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Blog do Dan Josua

A raiva que vem de acreditar em um mundo onde copos não se quebram

Dan Josua

08/11/2018 04h00

Crédito: iStock

O filósofo Sêneca estava em um banquete luxuoso, organizado por Vedius Pollios, um aristocrata com mais dinheiro do que bom senso — e amigo do imperador Augusto, ao que parece. Em um determinado momento, enquanto Sêneca estava provavelmente meio embasbacado com o excesso de luxo, um escravo tropeçou e derrubou uma bandeja cheia de copos de cristal. Vedius Pollios, que detestava o som de copos se quebrando, em um ataque de fúria, ordenou que o escravo fosse jogado em um poço de lampreias.

Confesso que fico abismado com alguém que tenha pensado em um castigo tão cruel e que tivesse um monte de lampreias guardadas só para uma ocasião dessas. Mas, deixadas de lado as nossas sensibilidades modernas, ainda é interessante perguntar: o que há no barulho de vidro se quebrando para desequilibrar um homem nessa medida?

O filósofo Alain de Botton, em um pequeno livro chamado "As consolações da Filosofia", dá uma excelente explicação. A fúria de Vedius, segundo o filósofo, vem de acreditar em um mundo onde copos não se quebram.

É estranho, talvez um pouco infantil, imaginar que um adulto possa viver em uma fantasia tão precária. Mas estamos todos presos em pequenas fantasias desse tipo. Nos irritamos com o controle remoto que se enfia na fresta do sofá. Gritamos com nossos filhos adolescentes que deixam a meia largada na sala de jantar. Esbravejamos contra o mesmo trânsito na mesma cidade todos os dias.

Fazemos isso porque acreditamos infantilmente em um mundo onde o controle está sempre ao alcance, onde adolescentes se comportam como adultos e o trânsito em uma megalópole é ágil apesar do excesso de carros. No meio desses julgamentos todos, ficamos presos e procuramos alguma vítima para jogar em um poço de lampreias —  sem perceber que nos envenenamos com toda essa bile negra que engolimos.

Daí, vale perguntar: o que aconteceria se deixássemos todos esses julgamentos para trás? Se pudéssemos encarar o mundo como ele é e não como gostaríamos que fosse?

Não, não estou falando de resignação ou de aceitar que tudo precisará ser sempre do jeito que é hoje. Mas de poder nos libertar de uma recusa infantil da realidade como ela é —e, quebrando essas correntes, aumentar nossa capacidade de enxergar as coisas como ela são. Inclusive para que seja possível pensar, com efetividade, em como mudar o que precisa ser mudado.

Dentro dessa perspectiva, os sons de vidros se quebrando, para quem tem tantos copos de cristal, são apenas um barulho. Uma meia no sofá é apenas a marca de que um filho viu televisão naquele dia. Podemos não gostar dos cacos de vidro ou da meia. Mas, sem julgar, eles não representam falta de respeito nem são um pecado.

São apenas coisas para serem cuidadas. E, quem sabe assim, paramos de nos envenenar com raiva enquanto procuramos culpados.

Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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