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Blog do Dan Josua

Por que nos identificamos com os super-heróis? Um obrigado a Stan Lee

Dan Josua

15/11/2018 04h00

Crédito: iStock

Nesta semana, aos 95 anos, morreu um dos criadores da Marvel Comics, Stan Lee. O homem que criou heróis como Homem Aranha, Capitão Marvel, O Hulk, os X-Men, entre muitos outros. Esse post é meu pequeno agradecimento.
O super-herói é a versão contemporânea de um herói mitológico. Milhões de jovens e adultos, como eu, passaram infindáveis tardes lendo e se distraindo com essas histórias maiores do que a vida. Mas por que a gente se identifica com essas figuras poderosas –por que esses temas mitológicos de poder, heróis e vilões podem dizer tanto a nós, homens e mulheres comuns, com vidas ordinárias?
À primeira vista a resposta talvez pareça óbvia: de alguma forma, o mundo dos quadrinhos simplifica a vida. Sabemos com clareza quem são os mocinhos e quem são os vilões. Nesse nosso mundo cinza, onde os vilões do dia a dia são discretos ou inexistentes, talvez imaginar um mundo mais simples seja um grande alento.
Mas acredito que exista algo a mais do que simplicidade por trás do nosso fascínio. Talvez nos apaixonamos pelo aspecto mitológico dessas histórias –o fascínio terrível de ver os mesmos personagens sofrerem com os mesmos acontecimentos em infinitas repetições.
Tal como os gregos que ensaiavam inúmeras vezes o mesmo destino trágico de Édipo, não importa quantas vezes Peter Parker ganhe seus poderes de Homem-Aranha, ele sempre vai testemunhar a morte do tio que lhe criou depois que ele escolhe não impedir um criminoso comum. Independentemente de quantas versões possamos ver, o Homem-Aranha sempre vai ser modelado pela icônica frase: "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades".
Essa dimensão trágica do herói que, ao ganhar poderes, se vê ainda mais impotente para salvar as pessoas que ama, é o que fascina nesse personagem. Se, por um lado, ficamos maravilhados com a sua empolgação enquanto descobre os seus poderes e aprende a se estilingar entre os prédios de Manhattan, voltamos a ler e reler sua história impelidos pelo seu desespero de ter responsabilidade na morte do homem que lhe criou.
A marca do super-herói é que, por mais poderoso que ele seja, ele é incapaz de fugir de seu destino.
O Homem-Aranha, por exemplo, é a encarnação adolescente da disputa entre responsabilidade e displicência –em uma história na qual, a cada passo, a displicência e o romantismo da infância cobram seu preço. Podemos traçar trajetórias semelhantes para a maior parte dos grandes heróis imortalizados em gibis (e não precisam ser apenas da Marvel).
Super-Homem, do alto de todo o seu poder, vê que o bilionário Lex Luthor, orquestrando o sistema, sempre consegue fugir das punições legais. A identificação com esse herói não vem tanto de projetarmos nossa fragilidade em sua potência, mas de vermos que, mesmo com a sua força descomunal, ele continua impotente e incapaz de verdadeiramente salvar o planeta. Mesmo tão poderoso, ele se encontra isolado em um mundo de alienígenas que não são capazes de entendê-lo. Quem acompanha os quadrinhos pode citar diversas histórias em que ele mostrou a cara solitária de quem pode ouvir todas as conversas e o terror de ter que escolher entre ser um ditador ou ver o mundo sofrer.
Podemos construir os mesmos argumentos sobre a depressão e o trauma de Batman, como os motores de sua força. Afinal, só existe o herói após o assassinato de seus pais. E, sinceramente, quem não quer acreditar que as nossas cicatrizes podem nos transformar em uma versão melhor de nós mesmos?
O Hulk é a raiva do homem bom. Os X-Men são a possibilidade de um conjunto de jovens estranhos se unirem em uma família frente a um mundo que não os aceita. Uma alegoria para a luta dos direitos dos negros nos Estados Unidos, mas também o sonho de muitos dos meninos e das meninas que não se sentem pertencendo a nenhum grupo da sociedade.
O herói mitológico existe, segundo o escritor italiano Umberto Eco, pela imediata e constante identificação do leitor com sua história, que de alguma forma está congelada em um passado histórico. O herói moderno, com capas e collants coloridos, sobrevive do mesmo jeito. Encarnando infinitas versões da mesma história.
Por ter me dado alguns dos deuses modernos que citei, pela companhia no meio de meus sonhos e fragilidades: obrigado, Stan Lee.

Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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