Como nossa habilidade de falar nos impede de permanecer no presente
O processo é rápido. Ensine uma criança que A = B e que A = C e ela, rapidamente, entende que C = B –mesmo que nunca ninguém tenha lhe contado sobre essa relação de igualdade (C = B).
Toda essa confusão é para tentar resumir o que faz dos seres humanos animais tão especiais. Fazemos relação com tudo. Nossa linguagem, nossa capacidade de simbolizar, é, justamente, a nossa aptidão de estabelecer relações arbitrárias entre as coisas. Relacionamos, por exemplo, sons com objetos– tratamos o som "GATO" como se fosse o próprio animal.
Fazemos essas relações de tal forma que, para seres humanos, tudo se relaciona com tudo. Pense em um martelo, por exemplo. Ele se relaciona com que cor? E uma flauta, que cor tem?
Posso perguntar se a tristeza é amarga ou doce, e cada um de nós vai fazer uma relação. Sem que, talvez até esse momento, alguém tenha lhe ensinado uma relação específica entre sentimentos e gostos. Fazemos tantas relações que o processo é automático. Se vivemos pensando, vivemos fazendo relações – pouco cientes de que os sons que ecoamos em voz baixa estão representando uma série de objetos distantes.
Essa nossa capacidade de lidar com pensamentos e palavras como se fossem palpáveis ajudou nossa espécie a dominar o mundo. Graças a essas equivalências, podemos lidar com cautela com um cão que é chamado de bravo, mesmo antes de o conhecermos. Ou podemos ir pescar naquele canto, porque ouvimos que ele está "cheio de peixes" – mesmo que nunca tenhamos colocado os pés nessa praia. Lidamos como se o som "cão bravo" ou "peixe" fossem uma representação precisa do objeto (o próprio peixe ou cão bravo).
Infelizmente, nem sempre esse processo é vantajoso. Às vezes, ouvimos um elogio –"você dever ser muito inteligente para conseguir resolver esse problema" — e imediatamente nos sentimos mal. Pois intuímos a relação oposta –"se eu não resolver um problema, eu serei burro". Assim, o que foi dito como uma tentativa de incentivo, acaba nos jogando para baixo.
Mesmo em um dia de sol, por conta de sua linguagem, o ser humano é capaz de ficar triste com a chuva –que, para sua cabeça preditiva, inevitavelmente virá. Nossa linguagem nos tira do momento presente, e nos empurra para um passado de arrependimentos ou para um futuro de preocupações.
O que talvez seja a nossa maior vantagem evolutiva, nossa linguagem, também é a fonte de boa parte de nosso sofrimento.
Nesse complexo jogo, de pouco valem dicas triviais. Se ouvimos que não adianta pensar negativo, antes de conseguir parar, já nos vemos pensando coisas ruins. O pensamento é automático e tentar freá-lo é tão inútil quanto tentar se forçar a esquecer de alguém. Quanto mais energia dedicamos a esquecer de alguém mais acabamos nos lembrando dessa pessoa. O mesmo vale para pensamentos: se jogamos eles para fora da consciência, eles inevitavelmente voltam, com força. E, nesse jogo, nos sentimos cada vez pior.
A solução não está em conselhos fáceis, isto é, em pensar do jeito certo. Mas sim em entender que pensamentos são apenas isso, pensamentos. A diminuição do sofrimento vem quando conseguimos separar nossos pensamentos de "chuva" da experiência do sol esquentando a nossa pele na praia. Porque um, o sol, é real. E o outro é apenas uma relação arbitrária que minha cabeça, que aprendeu a ligar todos os pontos, ecoa.
Conseguir voltar para o presente, fugir da realidade da nossa cabeça para entrar na realidade do mundo, depende de treino. Um treino generoso que envolve observar os pensamentos de forma afastada. Como se colocássemos um pequeno sino em nossa mente que diga: "isto é só um pensamento, eu posso voltar a sentir o que está acontecendo de fato comigo (o sol na minha pele, o chuveiro no meu ombro)".
Como com qualquer habilidade nova que estamos aprendendo, no início estamos fadados a fracassar. Fadados a voltar aos velhos hábitos. E, como qualquer aprendizado, a insistência faz o monge.
Referências
Para saber mais sobre essa teoria de linguagem, chamada Teoria dos Quadros Relacionais – Relational Frame Theory [RFT], veja o livro de Steven C. Hayes, Dermot Barnes-Holmes & Bryan Roche: Relational Frame Theory: A Post‑Skinnerian Account of Human Language and Cognition[2001]
Para ler mais sobre a terapia derivada dessa teoria, chamada de Terapia de Aceitação e Compromisso – Acceptance and Commitment Therapy [ACT], ver: Steven C. Hayes, Kirk D. Strosahl & Kelly G. Wilson, Acceptance and Commitment Therapy, Second Edition: The Process and Practice of Mindful Change 2018
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