O que perdemos quando desaprendemos a sentir tédio?
Eu passava tanto tempo sem fazer nada. Ou, melhor dizendo, completamente entediado. Jogando uma bolinha de tênis na parede ou examinando como, ao posicionar os fios do cobertor em diferentes direções, produzia tonalidades diferentes. Minha infância, como a de tantas outras pessoas que cresceram até os anos 2000, foi marcada por momentos de silêncio e tédio.
Mas em algum momento, provavelmente na hora em que buscar o celular no bolso se tornou um reflexo, eu perdi essa tolerância ao ócio. Não existe mais fila –existe ficar em pé enquanto vejo, vagamente desinteressado, meu feed no Facebook. Não existe mais "não tem nada passando na televisão" –só a procura pelo programa ideal em catálogos infinitos de Netflix e afins.
Vivemos em um mundo onde parece impossível desistir da ideia de que podemos e devemos ser entretidos a cada segundo. Paradoxalmente, parece que nos divertimos cada vez menos com todo o entretenimento à nossa disposição.
Não é à toa. Por um lado, estamos saturados – sem tempo entre uma refeição e outra, não chegamos a sentir fome. Por outro, estamos impacientes. É cada vez mais difícil tolerar a lentidão do entretenimento que demora para esquentar. É difícil tolerar as cem páginas que um livro do século 19 às vezes precisa para engatar a sua história. Assim como não está fácil atravessar a chatice que compõe parte importante do caminho que conduz aos nossos objetivos.
O que aquele filme do cientista ou do advogado brilhante não consegue transmitir é o cansaço das horas de estudos no laboratório ou na biblioteca. Não, no filme a ênfase costuma ser no momento do insight ou da catarse. Mas esses momentos são instantes em um oceano de trabalho repetitivo.
Talvez eu esteja sendo dramático. Talvez eu esteja generalizando em excesso o mundo a partir da minha experiência pessoal e da dos meus pacientes. Talvez.
Mas eu acho que algo do tédio está se perdendo. E, junto, a criatividade e a determinação de não ter nada melhor para fazer. Lembro que, de fato, melhorei meu inglês porque queria ler os livros de ficção científica que preenchiam as prateleiras do meu pai. Além da trilogia Guerra nas Estrelas, aqueles grossos livros de bolso em edições americanas eram a única opção que eu tinha para entrar em contato com histórias de heróis, outros planetas ou ciência. Sem outras possibilidades, eu me debruçava naqueles livros, mesmo sem entender muito. O dicionário ao meu lado e os olhos lacrimejando do cansaço de passar horas lendo páginas sem entendê-las direito. E acho que só fazia isso porque não tinha mais onde encontrar essas histórias — e, para completar, tinha muito tempo em minhas mãos.
Seja como for, desse exercício cansativo nasceu meu interesse por livros e por ciência. Mais ainda, naquela época, sem qualquer opção, eu me sentia mais conectado com aqueles livros do que eu me sinto hoje com as milhares de opções – objetivamente, muito melhores – que eu tenho ao meu alcance.
Pode ser que a diferença não esteja no mundo, mas no fato de eu ter envelhecido: para um adulto, tardes ociosas em frente ao ventilador não são mais uma possibilidade. O problema, então, não é a distração em forma de telefone que eu carrego no meu bolso, mas a própria passagem do tempo.
No fundo, torço para que seja isso. Porque eu consigo imaginar poucas coisas mais tristes para a minha filha do que a impossibilidade de ter uma tarde vazia. Afinal, é desses vazios que se abre o espaço para que a gente se descubra.
Temo, entretanto, que a verdade seja outra. Que, bombardeada de possibilidades sem fim, minha filha e seus contemporâneos nunca vão aprender a tolerar o silêncio e a delícia de não ter absolutamente nada para fazer.
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