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Blog do Dan Josua

A gente precisa ter menos vergonha na cara e mais culpa nos ombros

Dan Josua

21/03/2019 04h00

Crédito: iStock

Desculpa.

Desculpa.

Desculpa.

Tanta gente parece estar se pedindo perdão o tempo todo. E eu fico me perguntando qual o problema de ficar um pouco com a culpa…

Mas, para você me entender, vou precisar dar algumas voltas.

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A primeira é pragmática. Sentimentos de culpa, ao contrário de vergonha, costumam ser associados pelas pessoas a bem-estar emocional. Devo apenas fazer uma observação: os estudos que apontam isso se referem aos termos em língua inglesa shame (vergonha) e guilt (culpa). É possível que as expressões em português tenham conotações um pouco diferentes, por isso vou pedir para você se ater às definições mais do que às palavras em si.

Admitir ter feito algo errado (ou seja, sentir culpa), mesmo que só em pensamento, não está associado à depressão e ao vício em drogas. Mas sentir vergonha, isto é, sentir que um ato denuncia que somos, como seres humanos, errados, está correlacionado com as dificuldades emocionais mencionadas. Olhando assim, isso quer dizer que as pessoas que sentem culpa são saudáveis emocionalmente, enquanto as que sentem vergonha, não.

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Isso me faz lembrar uma história que está no livro The Man in the Montain Top, de Susan Trott, editado pela Penguin. E ela é mais ou menos assim:

Um sábio estava em um táxi com sua discípula. No meio do trânsito caótico, o carro bate em outro. Os dois motoristas descem e começam a bater boca. O homem sábio então sai do carro, fala algumas palavras e, em instantes, os motoristas  se acalmam, dão tapinhas nos ombros e voltam a percorrer o seu caminho em paz.

Assim que saem do táxi, a discípula, mordida de curiosidade, pergunta:

"O que você disse para esses homens que teve esse efeito mágico?"

"Ah, eu apenas fiz o que eles não estavam dispostos a fazer. Eu assumi a culpa. Contei como estava empolgado, gesticulando com os braços para fora do carro. Disse que era impossível para o nosso motorista se concentrar na rua à sua frente. E que, sem querer, mandei sinais distorcidos para os outros carros, que poderiam achar que eu estava apontando que iríamos virar e mudar de caminho".

"Mas isso é absurdo!", reagiu a discípula. "Você não tinha a menor responsabilidade sobre como eles dirigiam".

"Pode até ser. Mas assumir nossa culpa é a única maneira de verdadeiramente ser livre e seguir em frente".

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Esse assumir a culpa é completamente diferente dos pedidos de desculpas constantes que preenchem o meu consultório e a vida de tantas pessoas. A explicação que o homem sábio dá aos motoristas se limita ao seu ato. Não exige que a culpa lhe seja tirada. Ao contrário, ele abraça a responsabilidade pelo que fez.

Já os pedidos insistentes de desculpas –aqueles dos "pedintes de desculpas" em série — transmitem uma coisa completamente diferente. "Desculpa por eu ser assim, por eu existir",  é a mensagem atrás desses pedidos. O "desculpe-me"  a todo instante não se refere a atos, mas a pessoas. O indivíduo que a cada dois passos pede desculpas não está arrependido do que fez, mas está acreditando que há algo profundamente errado em relação a quem ele é.

São pessoas que, como eu ou você, estão desesperadas para serem boas o bastante. E acabam deixando esse desespero transparecer nessas súplicas. Estão perdidas, achando que não merecem ser amadas como são. Para quem sente essa vergonha mascarada de culpa (e eu conheço poucos seres humanos que não são esmagados por esse sentimento de tempos em tempos), o amor só pode vir depois de conquistas.

"Eu serei amado depois que for promovido" ou "eu serei amado quando for bem na prova" ou, ainda, "eu serei amado quando for magro e em forma" ou, talvez, "eu serei amado quando gostarem dos meus textos."

Até lá –até esse lugar impossível onde já somos tudo o que aspiramos ser –, seguimos pedindo desculpas. Não porque nos arrependemos ou porque estamos tristes com o que fizemos, mas porque queremos que alguém arranque a culpa de nós.

Não é à toa que usamos essa palavra "des-culpa", pedindo que alguém a desfaça. Não é à toa que queremos que nos livrem desse sentimento. Porque, no final das contas, o que desejamos é acreditar que merecemos ser amados e apreciados pelo que somos.

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Des-culpa ou com-culpa?

Como última volta, talvez seja importante aprender a seguir com-culpa. Culpados pelos nossos atos. Pelas milhares de bobagens que fazemos, com a melhor das intenções, todos os dias. Essa culpa pode nos impulsionar para frente, para sermos melhor.

Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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