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Blog do Dan Josua

É importante saber dar risada do ditador que existe na nossa cabeça

Dan Josua

08/08/2019 04h00

Crédito: iStock

Todo mundo tem um pequeno ditador dentro da cabeça. Uma vozinha irritante que fica repetindo as mesmas velhas tragédias: "você não é bom o bastante" ou "o pior ainda vai acontecer". Esse pequeno ditador, como qualquer fanático, não tem senso de humor algum. Para ele, tudo é mortalmente sério.

Infelizmente, com frequência essa é a voz que aumenta o volume do alto-falante em nossa mente. Sabemos dos milhares de contra-argumentos. Lá no fundo, lembramos que não somos tão ruins assim. Mas o ditador está com o microfone e berra tão alto que mal conseguimos ouvir as outras personagens de nosso palco mental. Ele parece, por assim dizer, governar sozinho a nossa vida interna. 

Quando estamos sofrendo disso é quase impossível perceber o absurdo de nos deixarmos à mercê dessa vozinha cruel. Não tem muita gente que toparia ouvir conselhos de amigos com esse tipo de atitude, mas, quando a sugestão vem de dentro, é difícil reparar no ridículo por trás das palavras duras. A cura para tanta seriedade e crueldade pode passar (também) por algo simples e frequentemente negligenciado: pelo humor.

Ou, pelo menos, é no que o grande psicólogo americano Albert Ellis acreditava. Para ele, a rigidez cognitiva e a irracionalidade que compõe o sofrimento mental podem ser bem combatidas quando acrescentamos uma pitada de risos. A risada ajuda a evidenciar o absurdo das certezas cruéis (mas pouco factuais) que compõe o nosso sofrimento mental. 

Imagine uma pessoa tímida, completamente travada. O ditador na cabeça dela talvez esteja dizendo coisas como: "nem adianta abrir a boca, ninguém vai ter interesse no que você tem para falar".  Pode dizer coisas ainda piores, como  "você vai ficar parado com essa cara de tacho e todos vão te ridicularizar. Você não irá superar essa humilhação". 

Em um primeiro momento, um terapeuta ou um bom amigo tentará mostrar como esse ditador está generalizando ou apresentando apenas um lado das interações sociais. Porque, afinal, é raro que adultos sejam tão abertamente hostis (fora da internet). Ao ouvir isso, a pessoa tímida talvez até concorde, mas não adiantará. Porque, por mais que ela saiba que há algo de irracional em seus medos, o ditador está com um megafone nas mãos. E ele não para de gritar: "e se algo der errado, hein?! E se eu tiver razão?". 

É difícil suavizar esse tipo de pensamento ditatorial. Frequentemente, terapeutas, amigos e familiares ficam repetindo as mesmas platitudes: "Olha, não é bem assim. Você é uma pessoa legal etc".

Em situações como essa, Albert Ellis apelava para estratégias inusitadas. Convidava seus pacientes a abraçarem o absurdo. Jogue-se no pior cenário, da maneira mais inusitada, e veja se não há liberdade e risadas do outro lado, ele parecia sugerir.

Há quem diga que Ellis fazia coisas radicais, como esta: pegava um grande livro encadernado de couro, colocava no seu colo e o arrumava com uma corda em formato de coleira. Depois, dizia: "Este aqui será o nosso animal de estimação, que tal? E eu vou pedir para você ir até a rua e convidar as pessoas a fazerem carinho no seu animal". 

O paciente, então, ficava estarrecido. Perdido e atordoado. "Eu não vou fazer isso", provavelmente protestava. "Afinal, o que os outros irão pensar ao ver alguém, suando de ansiedade, pedindo carinho para um livro?" 

Esse era justamente o ponto. As pessoas em Nova York, onde se passava a cena, simplesmente não iam se importar muito. E essa seria uma das melhores maneiras de abraçar o absurdo que é sentir dificuldade para se apresentar a alguém. Seria um caminho para acolher o nosso medo de rejeição sem se render a ele.

Assim, quando o paciente tímido descia com o assistente de Ellis para fazer o exercício proposto, algumas pessoas até desviavam o olhar, outras o ignoravam, mas várias entravam na brincadeira e eram simpáticas. Mais importante do que tudo: mesmo diante das piores reações, o paciente não desfalecia. Ele aprendia a suportar o absurdo de sua situação. Aprendia a rir de suas ideias rígidas e autocríticas. Tudo bem ser um pouco ridículo –era o que o exercício parecia ensinar. 

Esse é o humor de Ellis. O de se colocar em uma situação capaz de deixar claro que o ditador na nossa cabeça não precisa ter país algum para governar. Ele pode ser, simplesmente, um pequeno déspota de uma ilha de bananas. E nós, liberados de seus insultos, podemos decidir fazer o que quisermos. E sobreviver em meio a lágrimas e risadas sinceras. 

Algumas observações finais que são importantes:

Bom eu deixar claro que o humor nem sempre é benéfico, especialmente no contexto terapêutico. Como tudo, tem uma hora e um lugar adequados para acontecer.

Especialmente na terapia, se há uma hora para rir, há outras tantas para chorar e para levar o que é sério muito a sério. 

A história do exercício de Ellis foi relatada pelo seu antigo assistente Daniel J Moran, durante sua palestra em um congresso. 

Já a ideia de que todo ditador não tem humor por ser fanático foi inspirada no ótimo livro de Amon Oz, Como Curar Um Fanático: Israel e Palestina: entre o certo e o certo (Editora Companhia das Letras).

Por falar em leitura, se quiser saber mais sobre o lugar do humor na psicoterapia, recomendo a seguinte: 

Saper, B. (1987). Humor in psychotherapy: Is it good or bad for the client?. Professional Psychology: Research and Practice, 18(4), 360.

Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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