5 estágios da quarentena: o que acontecerá com nossas cabeças?
É impossível falar de quarentena no Brasil. No mínimo, precisamos colocar essa palavra no plural. A nossa realidade exige que a gente encare esse momento com a disparidade social que marca o nosso país. Afinal, ficar na casa de veraneio no litoral, com vista para o mar e entrada privativa, é completamente diferente de dividir uma habitação em uma comunidade em Paraisópolis ou na Rocinha.
Para a elite rica do Brasil, quarentena pode até parecer um período muito esquisito de férias –com corrida na praia ao entardecer e picolé de sobremesa. Para a população mais vulnerável, com certeza é bem diferente. Falta de comida e de abastecimento serão problemas reais em apenas uma dessas realidades –não parece provável que os ricos de um país agrícola como o nosso serão ameaçados de passar fome.
Não dá, inclusive pensando em saúde mental, para fugir do cenário criado pela concentração de renda: as preocupações e os problemas irão variar conforme espelharem as diferentes classes sociais do país. E, desse modo, nenhuma projeção, como a que apresentarei a seguir, poderá ser precisa.
Assim, sendo justo, se essa projeção contém bastante pesquisa e um pouco da experiência italiana, o cenário descrito é apenas uma sugestão do que eu acho que pode vir a acontecer. Não é fruto de um complicado modelo matemático, nem a imagem em uma bola de cristal. É simplesmente um palpite educado de quem vem escutando diferentes pessoas passando por diferentes fases de quarentena. Dito isso, acredito que ela tenderá a seguir algumas ondas. Vale notar, antes de começar, que as diferentes realidades sociais poderão atravessar essas fases em ritmos distintos – assim, enquanto uma parte da população já sente o impacto da segunda ou da terceira onda, outra ainda se prepara para a primeira.
O primeiro estágio seria o da reestruturação, que já começou para quase a totalidade de nós. Quem vai trabalhar em casa precisará descobrir como adaptar os compromissos profissionais à realidade do home office. Quem perdeu ou vai perder o emprego precisa ir atrás de benefícios e do plano B. Rotinas de escolas já são substituídas por aulas a distância e crianças, de repente, estão em casa o dia inteiro. A ordem do momento é organização. Ou, talvez, se preparar para o impacto que virá. Mas, em geral, é muita correria para alguém perceber exatamente a dimensão do estresse que está por vir.
A segunda onda poderia ser chamada de estágio de "férias". A preocupação ainda não tomou conta da cabeça. A ameaça do vírus ainda parece distante e, mesmo que dispensado do trabalho, a sensação majoritária é de que as coisas devem voltar ao normal depressa. Até mesmo os mais ansiosos conseguem muitas vezes se acalmar em seus picos de nervosismo. É difícil prever como pessoas mais vulneráveis economicamente se sentiriam nessa fase, mas me arriscaria a dizer que elas estariam ansiosas, aguardando medidas de proteção por parte do governo ou de empregadores.
Esse segundo estágio é marcado por uma aparente "normalidade e união". Vizinhos tocam música pelas suas janelas e ainda são, na maioria dos casos, bem recebidos. A ideia de que isso é um sacrifício coletivo já toma conta, mas o peso desse mesmo sacrifício ainda não foi sentido pra valer. É a época do respirar fundo e esperar o tempo passar. Passatempos como televisão e quebra-cabeças ainda funcionam bem para distrair.
Aos poucos, porém, mais ansiosos começam a pensar em 2021 e já não conseguem se acalmar tão facilmente, embora ainda não tenham desistido de tentar se convencer de que tudo ficará bem. Esse processo mental é exaustivo, mas pode ter um sucesso relativo. As populações mais vulneráveis já estão sofrendo os problemas reais do isolamento e, caso estejam sem ajuda do Estado e do terceiro setor, precisam quebrar as regras da quarentena para garantir a sua subsistência. Como esperado, a ansiedade e preocupação dessa parcela da população, é mais elevada, espelhando uma realidade mais difícil.
O terceiro estágio é marcado pelo início da fase mais deprimida, por assim dizer. A voz e o violão do vizinho não saem mais pela janela. Trocar de roupa e se esforçar para aparentar normalidade se torna bastante penoso. Não parece mais valer a pena. Netflix e Big Brother já não sustentam a passagem do tempo para quem está sem trabalhar e a televisão serve mais para iluminar a sala de azul do que para distrair as ideias. O sofá deixa de ser um lugar confortável e se torna um pequeno buraco negro de preguiça. Ele suga, meio sem se fazer notar, as forças de quem se entrega a ele o dia todo.
As atividades escolares a distância só são seguidas pelos alunos mais diligentes – e a quantidade de vídeos infantis no Youtube bate recordes históricos. Os pais passam a perder sua paciência. Como pequena nota, vale dizer que segundo uma revisão publicada na revista The Lancet, a presença de um filho aumenta o risco psicológico em uma quarentena, comparado a não ter filhos, mas, curiosamente, ter mais de três filhos é protetor para a saúde mental dos pais.
Nas comunidades, se a ajuda ainda não chegou a contento –como o auxílio prometido pelo governo, por exemplo – a quarentena se torna impossível. Suas regras são simplesmente ignoradas para garantir o mínimo de bem-estar físico. Mais uma vez, a pressão emocional nessa população tende a ser maior, pois acompanha os riscos maiores.
O quarto estágio ninguém sabe quando começa e quanto tempo dura. Ele é marcado por angústia generalizada e pela necessidade de previsões sobre como as coisas vão se seguir. Transparência do governo e vozes tranquilas e coerentes das autoridades são mais necessárias do que nunca. O ambiente de sátira política parece impossível. Se as pessoas ainda mantêm a quarentena é porque podem ver o efeito de seu sacrifício – e para isso precisam de líderes que lhes mostrem esses ganhos, como hospitais de emergência atendendo a população e as vidas sendo salvas, por exemplo.
Com liderança política adequada, a inquietação do confinamento prolongado pode se misturar a uma sensação de orgulho nacional. É preciso que a população saiba que está vencendo a guerra –e que a batalha era, literalmente, de vida e morte. E não sejamos ingênuos, a covid-19 em si será apenas um dos fronts dessa disputa –os impactos econômicos e sociais nos mais vulneráveis se tornarão tão importantes quanto os efeitos na saúde. Sinceramente, fazer essa diferença é uma mera abstração, porque, como sempre, o cidadão tem o direito de ser protegido em todas as suas dimensões –a social, a econômica e a física.
A quinta e última onda anuncia o início da vida sem coronavírus. Voltaremos aos poucos aos velhos hábitos do passado, mas… Será que o que aprendemos nessa guerra vai nos guiar daqui para frente? Gostaria de acreditar que vamos dar valor ao óbvio à saúde das pessoas. Também vamos praticar em nosso dia-a-dia o que é absolutamente evidente: somos todos feitos da mesma mistura de carne e osso e todos merecemos as mesmas chances debaixo do céu.
Temo, entretanto, que nessa quinta e última fase se reestruturará a mesma coisa de sempre. Ricos e pobres do país tão apartados como sempre. Os esforços de caridade e a sensação de comunidade relegados aos tempos de exceção. O SARS-CoV-2 (nome do vírus) não teve a força da queda da Bastilha: os nobres continuam nobres –as estruturas sociais permanecem as mesmas. E todos, misturando alívio e descontentamento em doses proporcionais as suas contas bancárias, voltam as suas vidinhas cotidianas.
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