Blog do Dan Josua http://danjosua.blogosfera.uol.com.br Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Thu, 30 Jul 2020 07:00:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Afinal, o que é felicidade? O que precisamos para construir um novo tipo http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/30/afinal-o-que-e-felicidade-o-que-precisamos-para-construir-um-novo-tipo/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/30/afinal-o-que-e-felicidade-o-que-precisamos-para-construir-um-novo-tipo/#respond Thu, 30 Jul 2020 07:00:12 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=1039

Crédito: iStock

Felicidade é um desses conceitos estranhos. É importante demais para a gente simplesmente desistir dele e amplo demais para sabermos exatamente o que queremos dizer quando usamos essa palavra. No meio dessa complicação, com frequência usamos a expressão felicidade sem prestar atenção ao significado que estamos emprestando a ela.

A primeira confusão é entender a felicidade apenas como um sentimento agradável. Mas pense bem: o que significaria se ela fosse apenas uma sensação quente que sentimos quando coisas boas acontecem? Simplesmente, ninguém poderia se dizer feliz por mais do que alguns instantes de cada vez. Portanto, como um sentimento, felicidade seria um estado pouco relevante para as nossas vidas e ir atrás dela seria de uma futilidade sem tamanho.

O leitor mais cínico talvez esteja pensando que esse, justamente, é o ponto. Seres humanos têm um buraco sem fim em seu peito e nunca vão se sentir completos —é o que se diz muito por aí. Mas esse cinismo é somente mais uma forma de repetir o raciocínio simplista de considerar felicidade apenas como um sentimento. Só que felicidade pode ser muito mais do que isso.

Felicidade tem a ver com uma direção e não com um destino. A melhor felicidade de que dispomos é caminhar por uma vida onde escolhemos a qualidade que daremos aos nossos atos. Felicidade é emprestar significado aos nossos dias.

Assim, é possível ser feliz e chorar ao mesmo tempo. Nossos fracassos, dores e arrependimentos podem ser tijolos na estrada de uma vida feliz. A ideia talvez pareça desagradável porque fomos convencidos de que deveríamos sentir apenas as sensações agradáveis da vida. Mas pare um pouco comigo para a gente pensar sobre isso.

Imagine que a pessoa que você mais ama no mundo está doente. Feche os olhos por dois segundos e veja o rosto dela sereno e triste enquanto sabe que esse é o seu fim. Pouco antes de partir, ela pede que você fique ao seu lado e lhe dê a mão. A despedida de vocês.

Nesse momento, um médico chega e lhe oferece duas opções: você poderia tomar um calmante que lhe apagaria até o dia seguinte e não precisaria sentir nada enquanto essa pessoa estivesse morrendo. Ou poderia entrar no quarto para lhe segurar a mão. O que você escolheria? Qual caminho poderia levá-lo à felicidade?

Alguns estudos demonstraram que a disposição para sentir dor emocional está positivamente associada com o bem-estar e a saúde mental. É isso mesmo: se você escolheu o caminho da pílula, tem maiores chances de receber um diagnóstico psiquiátrico em algum momento da vida.

Felicidade, portanto, é encontrada (também) no abraçar da dor.

Uma segunda confusão sobre o conceito de felicidade acontece em muitas das conversas sobre “propósito” que escutamos por aí. Apesar de bem intencionada, a palavra “propósito” facilmente engana. Isso porque confundimos propósitos com metas e deixamos nossos valores de lado enquanto entramos na corrida de ser sempre mais. Perdidos em um papo vago sobre propósitos, é fácil cair na cilada do sucesso em que não importam os nossos atos, mas os símbolos de nossas vitórias.

Passamos, por exemplo, a nos preocupar com ter um carro e com a conta no banco ou, talvez com o número de seguidores nas redes sociais —e acabamos nos sentindo vazios ao precisar de cada vez mais. Mais estudos apontam o que talvez você já suspeite: dar valor a esses ganhos de aparências, priorizando-os, está positivamente associado com sofrimento mental. Em outras palavras, ganhar dinheiro e status pode até ser bom, mas viver a vida em função disso pode nos deixar miseráveis.

Para encontrar a felicidade não é necessário um propósito grandiloquente ou grandes conquistas: é mais útil pensar no significado que vamos dar ao nosso próximo gesto, seja ele qual for.

Pense: se você morresse agora e seu fantasma pudesse assistir em silêncio a sua família e os seus amigos se despedindo do seu corpo, o que você gostaria de ouvir? Sobre como o seu carro era bonito? Ou sobre a qualidade de suas relações ou as coisas importantes que você defendeu em vida? Pois é… De repente, o mais caro dos carros parece insignificante e ficam as perguntas realmente importantes. Como você gostaria de ter vivido?

Se, ao fazer esse pequeno exercício, você pensou em doçura, então deixe impregnar doçura no seu próximo encontro, seja ele com quem for. Até mesmo sozinho, é possível investir nisso: simplesmente seja gentil consigo mesmo. Pensou em honestidade? Então, pegue o telefone e desfaça um mal entendido. E assim por diante.

Eu escrevo esta coluna há quase três anos e, nesse mesmo exercício, está mais do que na hora de eu sair do automático e pensar: como eu quero escrevê-la?

Comecei aqui no UOL com a ideia de tentar oferecer um lugar de acolhimento no meio da loucura do mundo lá fora. Confesso que fiquei seduzido com as luzes —muito chique estar por aqui, afinal. Nem nos meus sonhos mais otimistas achei que teria essa oportunidade.

Ao longo desses anos, acabei me perdendo algumas vezes com essas luzes. Fiquei preocupado com o comentário virulento ou com o número de visualizações no post. Agora, no fim da estrada, é fácil ver a bobagem disso tudo. Os momentos importantes foram os que vendi doçura, onde defendi a verdade (como a vejo).

Hoje, quando esse diálogo na UOL termina, isso tudo fica ainda mais óbvio. Saio daqui com tristeza no peito —mas verdadeiramente feliz. Sei que estendi a mão —e torço para que alguém a tenha segurado. Uma pessoa que seja já terá feito valer todo o esforço. Mesmo com críticas, mesmo com mágoas e decepção, posso me despedir com a tranquilidade de quem defendeu o que importava.

Mas, atenção, não vou daqui para o silêncio! Vou, simplesmente, para um espaço meu. Um lugar onde eu vou treinar esse diálogo gentil —e aguardar a sua resposta. Quem sabe eu posso encontrá-lo por lá para construirmos, juntos, um novo tipo de felicidade?

Também estarei tagarelando no Instagram, viu? Espero que me procure por lá!

]]>
0
Precisamos segurar nossas próprias dores com carinho. Mas como é difícil! http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/23/precisamos-segurar-nossas-proprias-dores-com-carinho-mas-como-e-dificil/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/23/precisamos-segurar-nossas-proprias-dores-com-carinho-mas-como-e-dificil/#respond Thu, 23 Jul 2020 07:00:31 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=1033

Crédito: iStock

“Podem abrir os olhos”, disse o palestrante. Então, em um auditório com umas 200 pessoas, ele notou os soluços engolidos da mulher na plateia, se sentou ao seu lado e perguntou:

— Há quanto tempo você carrega essa dor?

A vida toda. Desde que era uma menina e não conseguia entender a distância e a frieza da minha mãe, ou a irritação e a impaciência do pai. Às vezes acho que tem algo estragado em mim.

— E você quer se livrar dessa dor?, perguntou.

Quem quer carregar um fardo desses”, ela respondeu sem palavras, apenas anuindo silenciosamente com a cabeça, enquanto ainda brigava com a própria respiração.

— Você tem filhos?, ele perguntou aparentemente mudando de assunto.

— Um menino de 4 anos.

— Eu vou retirar a sua dor. Sou terapeuta há tanto tempo que me tornei praticamente um mago ele começou a dizer com doçura e sem provocar nenhuma risada. “Só tem um detalhe. Um dia seu filho vai chegar em casa com uma dor parecida. É um ser humano e em algum momento a vida ainda vai bater nele. E ele vai se perguntar por que foi rejeitado, por que é burro ou por que não é digno de amor. Se eu tirar a sua dor agora, você não vai entender nada do que ele estará falando. Vai sorrir e pedir para ele não pensar nisso. Sentindo-se ainda mais solitário, ele irá para o quarto. Vai fechar a porta para sofrer sozinho. Exatamente como você, seu filho esconderá a dor e a carregará pela vida inteira. Vai se casar e ter filhos e sorrir para a foto — como você. Mas, por dentro, sempre haverá uma luta e uma vergonha de quem se imagina a única pessoa a se sentir desse jeito.”

O rosto dela se contorceu. Mesmo sabendo que ele não poderia tirar a dor de ninguém, ela afastou um pouco sua cadeira.

— Não. Eu prefiro ficar com a dor.

O palestrante sorriu sem mostrar os dentes e voltou para o palco. A aula seguiu sem mais qualquer comentário do assunto.

Nada precisou ser dito, pois o óbvio já estava no ar. A moça da plateia não estava quebrada, não precisava de concerto. A cicatriz, a dor, não fazia dela menos, nem mais. Sofrer é o custo de ser humano. E acolher o nosso sofrimento é abrir espaço para que outras pessoas possam se sentir perto da gente.

Não beijamos o machucado de uma criança porque acreditamos que isso ajuda na cicatrização. Fazemos isso para lembrar: aqui há cuidado.

*******
O texto poderia terminar no parágrafo acima. Para bom entendedor, meia palavra basta, etecétera e tal. Mas, me desculpem, eu vou martelar essa ideia.

O ponto todo é perceber como aprendemos a nos sentir sozinhos, imaginando que a dor é apenas nossa. E que só seremos aceitos quando jogarmos essa dor para dentro e aprendermos a sorrir para a foto.

Mas aí alguém vem e nos lembra das pessoas que amamos. Nos lembra que elas também podem estar usando as suas máscaras. E tudo fica óbvio: não queremos que elas escondam nada. As dores delas nos convidam a cuidar e não a punir. Raramente condenamos essas pessoas queridas por suas fragilidades. Ao contrário, tendemos a sentir uma aproximação.

Pare para pensar: de quem você se sente mais próximo, de quem tem apenas risadas e boas notícias para dar ou de quem lhe confessou uma fraqueza em uma madrugada qualquer? Pertencer, no final das contas, é poder ser simplesmente humano com alguém.

Para isso precisamos segurar nossas próprias dores com carinho. Mas como é difícil.

Quem quiser saber mais sobre psicologia e saúde mental, agora eu estou tagarelando também no Instagram. Você me acha aqui!

]]>
0
‘Quando a pandemia vai acabar?’ Estamos chegando ao limite psicológico http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/16/quando-a-pandemia-vai-acabar-estamos-chegando-ao-limite-psicologico/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/16/quando-a-pandemia-vai-acabar-estamos-chegando-ao-limite-psicologico/#respond Thu, 16 Jul 2020 07:00:39 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=1022

Crédito: iStock

Deu, né?

Você provavelmente já se viu pensando isso. Mesmo que o seu lado racional saiba que é preciso esperar a autorização dos especialistas e que o cenário talvez seja mais complicado do que parecia a princípio. Mesmo que você esteja com receio de voltar ao convívio com as pessoas nas ruas  e que tenha se tornado um pouco fóbico social, até. Mesmo que você se lembre de lavar as suas mãos em casa caprichando por 20 segundos religiosamente… Enfim, mesmo com tudo isso, a sua cabeça deve lhe falar de vez em quando: “acho que já deu disso tudo”.

E não é apenas a sua cabeça: são os banhistas na praia, as pessoas lotando calçadas em frente a botecos e festas clandestinas. Todos eles são testemunhas desse cansaço acumulado. Em muitos cantos encontramos ecos desse saco-cheio coletivo.

Se o debate em torno da quarentena parecia se dar em torno de apenas dois eixos –de um lado as pressões do mercado de trabalho, de outro os especialistas em saúde e medicina – o fim do distanciamento social, possivelmente, será mais prosaico. Nossas motivações individuais foram solenemente ignoradas por um tempo e agora, por causa delas, corremos o risco de uma reabertura desgovernada.

Para que uma retomada organizada fosse viável, seria necessário levar em conta as dimensões sociais e psicológicas.  A necessidade de contato social, por exemplo, não pode mais ser ignorada. Do contrário, jovens (e mais velhos) simplesmente seguirão piorando a tendência atual e se encontrando (e se abraçando e se beijando) a despeito das recomendações oficiais.

Por exemplo, talvez seja possível dar orientações, especialmente àqueles que ainda não têm necessidade de trabalhar fora de casa, de como aumentar de maneira mais controlada o círculo de contato – uma rede fechada de dez pessoas no máximo, parentes e amigos, quem sabe.  Isso pode fazer mais sentido do ponto de vista médico do que sair abraçando todo mundo e, ao mesmo tempo, atenderia a uma necessidade psicológica básica que seria a de contato social e físico. É dessa falta, principalmente, que vem aquele “deu, né?”.

Para ter uma ideia, a noção de que viver solitário é um problema importante é tamanha que o Reino Unido criou  bem, antes de toda essa pandemia, um Ministério da Solidão para lidar com a questão de forma mais aprofundada e apoiar a população que vivia sozinha. E, óbvio, esse não é um problema exclusivo dos britânicos. Acontece no mundo inteiro e eles apenas decidiram encará-lo antes dos outros. Tudo leva a crer que esse mesmo problema se ampliou nos últimos meses.

Por um tempo o medo da doença pode até ter colocado a necessidade de contato com os outros em segundo plano, mas já é de se esperar que a apreensão esteja diminuindo e que a saudade latente queira dar as caras.

Em outra dimensão, propagandas bem pensadas sobre o uso de máscaras –em adição às ideias punitivas já aventadas – podem ser essenciais. Escrevi anteriormente, por exemplo, que a resistência ao uso de máscara é muito maior em homens conservadores. Campanhas que visem essa população, portanto, deveriam ser uma prioridade.

Na minha opinião, todas essas estratégias precisariam ser embasadas não só nos conhecimentos da medicina e da economia. Está mais do que na hora de exigirmos a colaboração da psicologia e da sociologia nas políticas públicas.

Precisamos ter espaço para declarar em voz alta o que sabemos no íntimo de nossas cabeças: todos nós, a sociedade, estamos chegando perto do nosso limite psicológico. E isso precisa ser considerado, se não quisermos o caos e uma segunda onda de transmissão do vírus. A pandemia do medo está acabando e, quando ela for embora de vez, será difícil convencer milhões de pessoas sedentas de conviver com os outros a se trancarem em casa.

]]>
0
Superstições e a cloroquina: entenda o que ambas têm em comum http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/09/danca-da-chuva-e-a-cloroquina-entenda-o-que-ambas-tem-em-comum/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/09/danca-da-chuva-e-a-cloroquina-entenda-o-que-ambas-tem-em-comum/#respond Thu, 09 Jul 2020 07:00:33 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=1017

Crédito: iStock

Você já parou para pensar por que tantos povos desenvolveram rituais para fazer chover? Desde a dança da chuva — conhecida por ser performada pelos nativos da América do Norte, mas comum em cerimônias de algumas tribos africanas e religiões eslavas e romenas –, a necessidade de criar rituais para atrair a chuva é diretamente relacionada com a importância da água para irrigar o solo. Infelizmente, uma coreografia, por mais bela que seja, não tem o poder de fazer cair água do céu.

Nenhum ser humano faz chover com seus movimentos na terra. Mas os povos que desenvolveram esses rituais acreditam que eles funcionam em parte porque continuam dançando até a chuva começar (outros fenômenos sociais importantes, que não podemos aprofundar aqui, ajudam a sustentar o ritual). A dança obviamente não a provoca, mas a proximidade temporal dá a impressão de que sim.

E o fenômeno se repete em situações nossas, as mais corriqueiras. Por exemplo, posso apostar, em 99,9% dos voos comerciais. Eu sou um desses passageiros que costumam rezar para o avião não cair logo que escuto um barulhinho estranho vindo da asa. Mas, na certa, não são as minhas palavras dirigidas aos céus que me protegem. Ora, vamos lá, eu com certeza não mereço mais proteção do que todas as pessoas, inclusive crianças, que faleceram em acidentes aéreos.

Independentemente do meu mérito pessoal, meu avião segue voando porque foi bem construído e é, não importa o que digam os fóbicos, um meio de transporte extremamente seguro. Racionalmente eu até sei disso, mas, pelo sim pelo não, continuo rezando a cada barulhinho. Eu aprendi esse hábito, por assim dizer, por ter ficado seguro depois do ritual e não por uma inexistente relação de causa e efeito entre a reza e o avião.

São esses os atos que a Psicologia chama de supersticiosos. Para se ter ideia, esses comportamentos foram observados até mesmo em experimentos com animais. E, se você acompanhou o noticiário nesta semana, viu uma série de exemplos importantes vindos do Planalto.

O presidente Bolsonaro, afinal de contas, testou positivo para a covid-19. E já afirmou que está tomando hidroxicloroquina. Caso ele melhore —como, atenção, acontece com mais de 90% das pessoas que se infectaram com o novo coronavírus, independentemente do tratamento —, ele e seus apoiadores deverão usar isso como suposta evidência de que a medicação seria eficaz para pacientes com covid-19, o que já foi descartado pela OMS (Organização Mundial da Saúde), já que não há evidência científica que comprove esse benefício.

Na realidade, caso ele melhore de fato, saberemos apenas de uma correlação: ele tomou o remédio e melhorou. Ponto. Da mesma maneira como alguns povos dançam e chove. Mas não poderemos dizer com essa informação que ele melhorou porque tomou cloroquina. Ou que choveu porque os nativos dançaram. O mesmo vale para outras falas de Bolsonaro que são contra todo o conhecimento científico, como quando ele afirmou que não corria riscos por conta de seu histórico de atleta.

A questão toda, do ponto de vista psicológico, é que é extremamente difícil sairmos da nossa experiência pessoal para entendermos o mundo. E, se estamos presos apenas ao nosso ponto de vista, é impossível saber o que é superstição e o que de fato causa mudanças nesse mesmo mundo.

Boa parte dos esforços da ciência são justamente para garantir resultados que fujam dessa armadilha. É sempre demorado e caro. Exige profissionais treinados e os famosos ensaios clínicos randomizados com duplo cego, que são mesmo complicados.

Nestes tempos, em que a mera superstição recebe rótulos de “eu avisei”, precisamos fazer uma defesa reforçada da ciência. Correlação não é causalidade, sempre repetem os bons pesquisadores. Está na hora de também repetirmos isso como um mantra. Caso contrário, se duvidar, corremos o risco de sairmos para dançar contra um vírus. O qual, ao contrário da chuva que é indiferente aos nossos movimentos, pode nos impactar de maneiras muito diversas, dependendo do que a gente fizer.

]]>
0
Por que os homens resistem mais a usar máscara do que as mulheres? http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/02/por-que-os-homens-resistem-mais-a-usar-mascara-do-que-as-mulheres/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/07/02/por-que-os-homens-resistem-mais-a-usar-mascara-do-que-as-mulheres/#respond Thu, 02 Jul 2020 07:00:49 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=1015

Crédito: iStock

No começo de junho, o Senado brasileiro aprovou um projeto de lei que exige o uso de máscara nas vias públicas do país. O texto ainda depende de sanção do presidente e se torna necessário ao percebermos o que deveria ser óbvio: não é tão fácil assim convencer as pessoas a mudarem hábitos enrustidos.

Segundo pesquisa feita nos Estados Unidos, homens resistem mais ao uso de máscara do que mulheres. Enquanto 67% delas disseram que usaram máscaras fora de casa, apenas 56% deles fizeram o mesmo. Assim, enquanto temos uma epidemia que parece atingir de forma mais severa aos homens, vemos eles mais despreocupados com o contágio. Como explicar esse fenômeno?

Observar o comportamento de alguns líderes —como o do presidente brasileiro — talvez nos forneça algumas dicas. A resistência de Bolsonaro a sair com a proteção às ruas é tamanha que chegou a ser alvo de proibição explícita do governo do Distrito Federal (que já foi derrubada). Qual o problema de vestir um pedaço de pano no rosto e por que ele precisa lutar tanto contra isso?

As falas do presidente (e a sua postura em geral) apontam possíveis respostas. Ele diz que tem histórico de atleta e, portanto, não precisaria se preocupar —pouco importa que tenha demonstrado dificuldade para fazer flexão de braço. A força real de seus braços, aliás, é irrelevante. O fundamental é sedimentar a sua visão do que significaria ser homem. Ou seja, não apenas ser destemido, mas virtualmente invulnerável às ameaças do vírus.

Até mesmo a sua insistência no uso da hidroxicloroquina apesar da ausência de evidências sólidas sobre a sua eficácia é parte dessa persona. Ora, o presidente então saberia mais do que especialistas do assunto e falaria como quem não tem dúvidas. Mais uma vez, Bolsonaro tece a bravata que compõe a sua visão de homem.

A máscara de pano quebraria com essa imagem. Usá-la e parar de abraçar seguidores desmancharia essa figura de potência. Algo inadmissível para esse tipo de líder que, em certa medida, se sustenta nesse ideal de masculinidade, segundo o neurocientista americano e especialista em machismo Peter Glick.

Segundo o professor, a crise do coronavírus, é agravada por uma noção de liderança machista segundo a qual o poder se sustentaria a partir de uma imagem de potência e infalibilidade. É notável, nesse sentido, que muitos dos países com melhor desempenho na pandemia sejam liderados por mulheres, como a Nova Zelândia.

No meu modo de ver, para explicar o fenômeno das máscaras que são menos usadas por homens, o que acontece com os líderes parece se replicar na população. Dentro desse modelo de masculinidade, é difícil para o homem comum admitir fraqueza. Desse modo, com a vergonha espetando seu rabo, vemos muitos deles se recusando a usar máscara, quase como se o desejo de se proteger representasse algum tipo de derrota. Nessa maneira de pensar, contra o vírus invisível venceria quem sair para a batalha sem armadura.

É uma lógica estranha, mas absolutamente natural para quem cresceu em um mundo que diz que fragilidade é coisa de “mulherzinha” —do sexo oposto e, de quebra, no diminutivo. Enraizado nessa cultura tóxica, o homem passou a acreditar nesse absurdo duplo. Isto é, que há algo de errado no feminino e que homens provam sua sexualidade na brutalidade. E onde há brutalidade costuma haver ignorância, inclusive em relação à ameaça que enfrentamos como humanidade.

]]>
0
Por que só pensamos em cuidar da cabeça se há algum transtorno mental? http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/06/25/por-que-so-pensamos-em-cuidar-da-cabeca-se-ha-algum-transtorno-mental/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/06/25/por-que-so-pensamos-em-cuidar-da-cabeca-se-ha-algum-transtorno-mental/#respond Thu, 25 Jun 2020 07:00:10 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=1008

Crédito: g-stockstudio/iStock

No século 13, a prática médica usual para o tratamento de transtornos mentais era ter uma broca perfurando o cérebro do paciente. Acreditava-se que a técnica libertava demônios que se alojavam no crânio.
Foi apenas no século 19 que a ideia de que os quadros se tratavam de deficiências biológicas relacionadas ao sistema nervoso começou a ganhar tração. Mesmo no século 20 — e ainda hoje, em várias instituições pouco humanas —, tratamentos como duchas de água gelada e eletrochoques sem anestesia continuaram práticas comuns.
É fácil olhar para trás e torcer o nariz. Encarar o passado e perceber a sua barbaridade é até que gostoso — dá uma sensação de orgulho ver o quanto caminhamos. Até o momento em que se percebe que, no futuro, irão olhar para o que fazemos agora e virar a cara com o mesmo desprezo que dedicamos aos tratamentos médicos do século 13.
E talvez valha a pena perguntar: o que será que a pessoa do futuro vai pensar de nosso modelo de saúde mental atual?
É provável que nosso sistema, pautado em listas de sintomas e sem nenhum tipo de exame que dê suporte para o diagnóstico, seja visto com escárnio. As medicações que usamos, ainda que sejam infinitamente superiores aos tratamentos disponíveis antes, provavelmente parecerão grosseiras e imprecisas.
O mesmo, quem sabe, irá valer para a psicoterapia. Não sei dizer se o que fazemos, como terapeutas, será ridicularizado no futuro — por razões óbvias, é difícil enxergar os nossos próprios pontos cegos. Se soubéssemos onde estão as falhas, poderíamos imediatamente corrigi-las.
Consigo imaginar, no entanto, que a nossa ênfase exagerada na doença poderá ser vista com maus olhos. Uma melhor saúde mental não deveria ser objetivo exclusivo das pessoas, que são cerca de 20% da população, que sofrem de um transtorno psiquiátrico. Ao contrário, deveria ser matéria obrigatória. Para todos.
Pense na sua saúde física. Quem, hoje em dia, ainda pensa em cuidar do próprio coração apenas quando ele adoece? “Vou comer toda a pizza do mundo e aí depois eu pago um médico bem caro para resolver a angina”. Ninguém iria considerar  essa estratégia como sábia.
Ao contrário, a recomendação universal é levar uma vida saudável — com uma alimentação balanceada e exercícios físicos — para garantir o bem-estar do corpo. Aí, cabe a pergunta: por que será que essa lógica ainda parece tão distante para os cuidados com a cabeça?
Todos nós passamos por animadas aulas de educação física na escola, mas nunca nos explicaram o que eram sentimentos e como eu e você poderíamos lidar com eles, por exemplo. Ou, quando tentaram fazer isso, lançaram mão de moralismos e opiniões pessoais, sem qualquer embasamento científico.
As ciências do comportamento humano já sabem muito sobre o que é necessário para cultivar uma vida mais plena no que diz respeito ao equilíbrio mental. Conhecemos exercícios poderosos para exercitar nossa saúde neural. Sabemos quais as condições que favorecem o florescimento de nosso bem-estar. Mas ainda fazemos muito pouco com esse conhecimento.
Se queremos filhos, alunos, funcionários, parceiros saudáveis, precisamos lutar para incluir isso na cesta básica de cuidados. Se algumas escolas e universidades já têm demonstrado preocupação com isso, ainda assim temos um longo caminho pela frente. Posso até ser ingênuo, mas não entendo como o país possa se desenvolver (ou o mundo)  abrindo mão disso. Afinal, para que serve riqueza em um coração miserável?
Diga-se de passagem, se essa pandemia e essa quarentena provaram alguma coisa foi que todos nós podemos nos beneficiar de um pouco mais de cuidado em nossa saúde mental.
]]>
0
Por que as mortes no Brasil hoje chocam menos do que as da Itália em março? http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/06/18/por-que-as-mortes-no-brasil-hoje-chocam-menos-do-que-as-da-italia-em-marco/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/06/18/por-que-as-mortes-no-brasil-hoje-chocam-menos-do-que-as-da-italia-em-marco/#respond Thu, 18 Jun 2020 07:00:43 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=995

Crédito: iStock

Quando a Itália começava a ser devastada pelo novo coronavírus, eu acompanhava as notícias me segurando para não roer as unhas. Mil mortes por dia eram uma tragédia inacreditável e inaceitável. Como era possível? — Não cansava de me perguntar. E cheguei a me questionar se esse não seria o final do mundo como o conhecíamos.

Agora, três meses depois, vejo o altíssimo número de óbitos no Brasil e, sinceramente, meu coração mal muda de ritmo. Se ainda há um tanto de preocupação racional, a verdade é que o impacto emocional diminuiu enormemente.

A dessensibilização pela qual eu passei parece ser a realidade da maior parte de meus pacientes e conhecidos. Por que será que isso está acontecendo? Por que deixamos de nos chocar da mesma forma?

Será algum complexo de vira-lata que nos faz nos preocuparmos apenas com as mortes na Europa? Ou seria a quarentena tão cansativa que já nem damos mais valor para a vida humana? Ou será, por fim, que o cinismo tomou conta e agora a única coisa que nos importa é a economia e alguma volta à normalidade?

Bom, em alguma medida, cada uma dessas perguntas pode apontar para um pedacinho do fenômeno, mas não acho que elas nos aproximem do cerne do problema. E ele parece vir da própria natureza humana: a gente não sente em termos absolutos, mas por contraste.

Sabe aquela pessoa maravilhosa no primeiro encontro que se torna comum dois anos depois? É mais ou menos isso.

Para ter uma noção, essa coisa é tão séria que alguns estudos sugerem o seguinte: ganhar na loteria e sofrer um acidente paralisante tem mais ou menos o mesmo impacto sobre a nossa felicidade após um ano. Ou seja, relativamente muito pouco tempo depois.

Isso mesmo. Se você ganhar na loteria, provavelmente depois de um ano acabará se sentindo tão feliz quanto se sentia antes da dinheirada toda. E o mesmo vale para um acidente grave. É óbvio que os primeiros meses após ganhar na loteria são preenchidos de êxtase enquanto os meses subsequentes a um acidente que provocou uma paralisia tendem a ser de luto e melancolia. Mas a tendência a longo prazo é que as emoções voltem ao normal.

O terceiro carro novo que você consegue comprar na vida não traz a mesma empolgação do primeiro.É apenas mais um carro. E, no caso das perdas de quem ficou com as pernas paralisadas, elas aos poucos são substituídas por pequenos ganhos do dia a dia.

É claro que todo mundo escolheria vencer na loteria, se lhe fosse dada a opção. E é mais óbvio ainda que todos devemos dar suporte para quem passou por um acidente. De qualquer maneira, a noção básica não deixa de ser alarmante: seres humanos tendem a se acostumar com tudo o que se apresenta estável.

Talvez seja isso o que acontece agora. A covid-19 mata há tempo o bastante para que a gente ache normal que as coisas sejam assim. Do mesmo modo, a polícia no Brasil é tão violenta que não nos surpreendemos mais com essas notícias — elas são frequentes, porque a polícia brasileira é a que mais mata no mundo. Também cruzamos com moradores de rua em nosso caminho todos os dias e já não nos comovemos. O hábito da tragédia nos insensibiliza.

Esquecemos, assim, que mil mortes por dia não são apenas um número — são mil tragédias familiares. E como observar esses casos está se tornando um hábito, o impulso de fazer a nossa parte vai se perdendo. Por exemplo, deixamos de obedecer às regras de distanciamento social e, se usamos a máscara, ela frequentemente está abaixo do nariz (porque, aí, não embaça os óculos).

No momento em que normalizamos a morte, começamos a desencanar de nosso papel no meio disso tudo. E essa tendência pode acabar em catástrofe. E, mais triste, pode ser que a gente nem perceba o drama.

]]>
0
Como vencer um debate: está na hora de sair da raiva e encarar o medo http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/06/11/como-vencer-um-debate-esta-na-hora-de-sair-da-raiva-e-encarar-o-medo/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/06/11/como-vencer-um-debate-esta-na-hora-de-sair-da-raiva-e-encarar-o-medo/#respond Thu, 11 Jun 2020 07:00:47 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=990  

Gostamos de acreditar que nossas ideias nascem do centro de nossa racionalidade. Por exemplo, acreditamos que temos determinada visão política e social por conta de fatos que teríamos estudado minuciosamente. Ã-ham… Então, tá.

A verdade é que o nosso cérebro é uma máquina preditiva que procura no mundo referências daquilo em que já acreditamos. Nossas opiniões não estão pautadas em nossa razão, mas em nossos medos. E uma série de estudos sobre posicionamento político demonstram exatamente isso.

Em um deles, os cientistas verificaram que pessoas conservadoras se tornavam ainda mais conservadoras, mesmo que temporariamente, diante de uma ameaça física. Em outro, notaram que crianças de 4 anos que respondiam a ameaças de forma mais intensa tinham maior probabilidade de se tornarem adultos socialmente conservadores cerca de duas décadas — duas décadas! — depois.

Até mesmo a fisiologia cerebral parece espelhar esses fenômenos. A amigdala, estrutura no meio da massa cinzenta que é considerada a sede cerebral do medo, é maior em pessoas com essa visão política e social mais conservadora do que naquelas que se dizem mais liberais.

Um estudo, de pesquisadores da Universidade Yale nos Estados Unidos, publicado em 2018, chamou a atenção porque, no resultado, mostrava como era possível mudar a posição de cidadãos ligados ao partido conservador americano, o dos republicanos, em temas sociais como racismo e feminismo.

O que os cientistas de Yale fizeram: no lugar de prover uma série de dados explicando as mazelas do racismo na comunidade negra americana, eles propuseram um pequeno experimento mental. Metade dos participantes passou por um elaborado exercício de mentalização em que precisou se imaginar como dona de uma espécie de superpoder da invulnerabilidade —nem balas de revólver, nem vírus, nada seria capaz de lhe ferir ou prejudicar. A outra metade fez um exercício semelhante em que se imaginou ganhando a habilidade de voar.

Desse modo, observou-se a seguinte tendência: os conservadores, quando se sentiam seguros como se tivessem uma pele de aço, avaliavam assuntos sociais de forma mais liberal, enquanto aqueles que simplesmente se imaginaram com poder de voar permaneciam com as opiniões de sempre. Suas respostas não eram elaboradas a partir de políticas de falta de empatia, mas pelo medo de algo ameaçar sua segurança.

Ao meu ver, em um mundo marcado pela falta de diálogo, esses resultados são importantes. Eles nos lembram que um debate não é vencido por quem tem o melhor argumento, mas por quem consegue colocar as pessoas em um lugar onde elas podem escutar. Onde, em outras palavras, não se sintam ameaçadas.

É exatamente o mesmo fenômeno que encontramos na prática clínica. Por trás de toda raiva descontrolada, de toda visão de mundo rígida, existe medo ou tristeza. Na minha vivência, com um paciente em psicoterapia é uma enorme perda de tempo ficar falando de sua raiva. Aumentamos a liberdade quando topamos encarar os sentimentos difíceis que a alimentam.

Talvez o mesmo valha para as feridas sociais de que precisamos cuidar.

Assim, está mais do que na hora de a elite brasileira perceber que, no fundo, a sua pele já é de aço. Se você tem a pela da cor da minha, o condomínio murado e cheio de câmeras e, ainda com tudo isso, se sente desprotegido e com raiva, é bom lembrar que comparativamente a sua pele é, sim, invulnerável. Se seus incômodos na quarentena passam por precisar cozinhar e lavar panela todos os dias, vale recordar que isso é estar completamente seguro.

Ao reconhecer nossa segurança, está na hora de ficarmos de joelhos para exigir peles indestrutíveis assim para todos à nossa volta. É hora de reconhecer que o ódio na fala da mãe do menino Miguel, para dar um exemplo, está cobrindo a maior tristeza do mundo.

Ainda está em tempo de a gente ficar de joelhos, reconhecer privilégios e se deixar chorar pela dor dos outros. Quem sabe aí o país se levanta para cuidar de suas feridas.

]]>
0
Ansiedade pós-pandemia: as pessoas que não vão querer mais sair de casa http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/06/04/ansiedade-pos-pandemia-as-pessoas-que-nao-vao-querer-mais-sair-de-casa/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/06/04/ansiedade-pos-pandemia-as-pessoas-que-nao-vao-querer-mais-sair-de-casa/#respond Thu, 04 Jun 2020 07:00:33 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=984

Crédito: iStock

Muita gente está ansiosa para o fim da quarentena. Mal pode esperar que esses dias de confinamento finalmente acabem. Querem abraços, bares abertos e uma vida que se pareça com a de 2019.

Já outros, mesmo que saudosos dessas mesmas coisas, estão morrendo de medo do momento em que deverão voltar para as ruas.

Não é difícil de entender o porquê. Ficaram mais de dois meses trancados em casa ouvindo relatos do fim do mundo. O vizinho, o padeiro e a caixa do supermercado quase deixaram de ser vistos como seres humanos para serem encarados como possíveis vetores de transmissão.

Isoladas, higienizando as compras antes de guardar tudo na despensa, essas pessoas construíram uma muralha para garantir sua segurança em meio a pandemia. E, depois, ouvir autoridades mascaradas talvez não seja o suficiente para convencê-las a destruir esse muro assim de uma hora para outra. Nessa lógica, parece sensato manter as portas fechadas e se proteger de todo o mal que venha de fora. Afinal, nada mais humano do que querer se resguardar da doença e da morte

No entanto, eu não acredito que seja apenas o medo da finitude da vida que alimente a vontade de alguém se manter em quarentena. A incerteza sobre o mundo que se formará após a covid-19 ir embora é um motor importante para essa ansiedade.

Ninguém sabe qual realidade nos espera do lado de lá da quarentena. Como será o tal do novo normal? Como funcionarão as escolas, as baladas,os escritórios?  Só de imaginar essas perguntas, indivíduos ansiosos começam a sentir um frio na barriga. Ter que dar adeus à vida que conheciam — e aceitar que isso talvez não seja só uma fase breve e passageira — é algo doído. E, de forma paradoxal, retomar a convivência em uma sociedade transformada depois da quarentena exige que a gente abandone de vez a esperança de um retorno rápido à vida normal. Esse abandono é temido.

Ainda que pareçam medos bastante distintos —o de morrer doente e o de encarar o mundo transformado —, uma mesma raiz nutre ambos. Ela seria a intolerância às incertezas.

A dificuldade para lidar com o “é possível” costuma estar por trás das mais variadas formas de ansiedade — daquela gerada pelo avião que “pode” cair (ainda que o acidente aéreo seja muito improvável) até aquela que emerge só de lembrar que o chefe que “pode” lhe demitir (muitas vezes, uma probabilidade igualmente distante). E, no fundo, nada disso é tão diferente dessa ansiedade que surge no cenário atual, a da volta às ruas.

Se ainda nutríamos esperança de que poderíamos prever e controlar nosso futuro —como deseja boa parte dos ansiosos —  a pandemia é um lembrete constante da futilidade desses anseios. Mais do que nunca está óbvio: as coisas podem dar profundamente errado. Podem —e esse é o verbo, como disse, que cria o mal-estar na ansiedade.

A solução pouco convencional é justamente aceitar isso. Nossa cabeça faz planos e gosta de ordem e previsibilidade. Essa não é nossa realidade, mas não podemos impedir que  ela queira nos proteger. Por isso, deixe que ela brinque de transformar a realidade em fantasias. A liberdade começa quando paramos de tentar controlar o incontrolável (nossa mente, a pandemia…), para ir em direção ao que é importante, nossos valores. Sejam eles o trabalho que nos sustenta (no momento certo) ou trancar a porta de casa e se isolar (em outro momento certo).

]]>
0
Entenda o que é luto ambíguo e por que precisaremos lidar com ele agora http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/05/28/entenda-o-que-e-luto-ambiguo-e-por-que-precisaremos-lidar-com-ele-na-pandem/ http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/2020/05/28/entenda-o-que-e-luto-ambiguo-e-por-que-precisaremos-lidar-com-ele-na-pandem/#respond Thu, 28 May 2020 07:00:42 +0000 http://danjosua.blogosfera.uol.com.br/?p=977

Crédito: iStock

André fechou a porta do quarto para isolar sua mãe e proteger o resto da família. As conversas através da porta fechada traziam uma sensação surreal. Mesmo sabendo que era a mãe do lado de lá, parecia que ela não estava ali. Faltava a presença concreta.

Uma semana depois ela precisou ir para o hospital. Os médicos atualizavam a família sobre o avanço do quadro por mensagens de texto. Ninguém podia visitar a ala reservada aos pacientes com covid-19, mas André tentava se acalmar pensando que em breve tudo voltaria ao normal.

Sua mãe faleceu e foi enterrada em um caixão fechado. O velório tradicional não pôde acontecer. André se viu perdido, entre irritado e triste. Um lado seu sabia que a mãe tinha morrido, mas a falta dos rituais de despedida deixaram um buraco em sua capacidade de entender completamente a situação.

André, como tantos outros que perderam entes queridos nessa pandemia, precisarão processar uma perda ainda mais difícil do que a morte já costuma ser. Esse luto considerado ambíguo, segundo Pauline Boss, grande estudiosa do tema, está mais associado à melancolia e à ansiedade persistentes. Para quem não sabe, a professora da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, é considerada uma pioneira da terapia familiar. Ela define que o luto pode se tornar ambíguo quando algo da realidade da perda não pode ser devidamente processado.

É quando concretamente existe a ausência do corpo de uma pessoa da nossa convivência, mas a sua realidade psicológica se mantém presente. Acontece, por exemplo, com mulheres cujos corpos de maridos desapareceram na guerra e que, na hora de manter os filhos na linha, ainda dizem coisas como “quando o seu pai estiver aqui”. Aliás, foi a partir de entrevistas com viúvas de corpos perdidos na Guerra do Vietnã que o fenômeno do luto ambíguo começou a ser estudado.

Existe o luto ambíguo também no sentido inverso, quando a realidade física está presente, embora a psicológica ou subjetiva já tenha desaparecido. É o caso, de quem convive com um familiar com Alzheimer —o corpo está ali, bem na nossa frente, mas é como se estivesse esvaziado da pessoa.

Ao quebrar os ritos que temos para lidar com a morte, é muito provável que a covid-19 vá deixar milhões de enlutados nessa situação, precisando lidar com uma perda ambígua e, por isso mesmo, mais devastadora. Um fim sem despedida torna difícil de o fechar de um ciclo. Muitos dos Andrés que se espalham pelo planeta vão ter dificuldade de acreditar no que sabem ser verdade —a pessoa que eles amavam não voltará.

Nossa cultura não está preparada para lidar com isso, já que a única reação que aprendemos a ter em relação à mortalidade é tentar evitá-la ao máximo. Pauline Boss afirma que nas culturas em que a morte é aceita como consequência natural da vida —ainda que postergada, quando possível — as pessoas tendem a lidar até mesmo com esse luto ambíguo de forma muito mais saudável.

Entre o índios norte-americanos Anishinaabe, por exemplo, às vezes se faz uma cerimônia equivalente ao funeral de um familiar com Alzheimer avançado. Depois dele, os cuidados, as medicações e o carinho continuam fazendo parte da rotina familiar, mas com o ritual é criado um espaço para se admitir a dura realidade: a mãe ou o pai ou o cônjuge que essa pessoa um dia foi não existe mais.

Talvez essa seja uma atenção importante nos meses e nos anos que ainda virão, por causa das mortes que se acumulam, como sabemos pelas manchetes dos jornais. Precisamos colocar os rostos de volta nessas estatísticas. E, acima de tudo, preparar os enlutados para o que devem enfrentar.

A morte é consequência necessária da vida. Aceitar essa realidade já nos coloca um pouco mais em paz com o nosso fim e com o fim de quem amamos. Essa noção da finitude pode nos empurrar, inclusive, para a vida que gostaríamos de viver.

Há muitos os filósofos dizem que aprender a morrer é a função da filosofia; está mais do que na hora de pegarmos o recado dos mestres do passado. E dar ainda outro passo: não apenas é preciso aprender a morrer, mas também a deixar morrer. Transformar a pessoa querida em memória, como escreveu Freud em “Luto e Melancolia” é a função final do luto saudável.

Evidentemente, o momento atual deixa essa tarefa difícil. Sim, a impossibilidade de se despedir atrapalha justamente esse processo de transformar alguém em memória. Mas saber o caminho de sair desse estado é fundamental. E, no caso, viver o luto, seja ele ambíguo ou não, com toda a sua dor é o único caminho para fora dessa mesma dor.

Vamos precisar, claro, criar novos rituais, novas formas de dizer adeus se as tradicionais falharem ou não forem possíveis. E lembre-se: abrir-se para essa dor é reconhecer o óbvio, que ela só existe porque ainda há amor. Talvez, pensando assim, não seja necessário que o sofrimento vá embora por completo. Quando aceitamos a dor do luto permitimos que o falecido viva na forma de memória amorosa

]]>
0