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Às vezes, a vida perde o seu sabor. Por quê?

Dan Josua

12/04/2018 04h05

Crédito: iStock

Albert era como você ou eu. Não sabia dizer se era particularmente feliz, mas tinha seus momentos alegres. Todo final de dia, quando podia, escolhia um docinho para comer antes de dormir e adorava aquele agrado açucarado. O adocicado em sua língua era melhor do que uma outra coisa sem graça qualquer.

Mas o doce deixou de ser tudo isso quando Albert mudou de emprego. 

Sua rotina continuava igual, mas o piso da sua sala estava ligeiramente inclinado, impedindo que relaxasse de verdade ao longo da jornada. Em outra ocasião, ele ficou bem embaixo de uma luz amarela e quente, que deixou o seu dia um pouco mais desagradável. Em outra, um apito constante não o deixou em paz. 

Não tinha nada grave acontecendo em sua vida. O problema eram aquelas pequenas coisas, estressantes e duradouras, das  quais ele não parecia ver saída. E, por causa delas, passado um tempo, Albert começou a chegar em casa sem fazer questão do seu docinho. Era como se o açúcar tivesse o mesmo sabor de uma insossa água. "Tanto faz", Albert parecia dizer. 

Apesar de parecer tão humano, Albert foi apenas um dos muito ratinhos que passaram por um modelo experimental chamado estresse crônico e moderado. E ele nos ajuda a entender uma faceta importante da depressão –- aquela sensação de que as coisas perderam a graça. Essa falta de prazer pelo açúcar na boca, esse "tanto faz" tão comum em pacientes deprimidos, é o que os psicólogos chamam de abolia. 

Parece (e talvez seja) cruel fazer um inocente ratinho passar por tudo isso, mas aprendemos algumas coisas muito valiosas com esse modelo experimental. 

Em primeiro lugar, dessa maneira nós podemos testar os antidepressivos que usamos em seres humanos. Será que, depois de tomar a medicação, o ratinho volta a buscar o açúcar? Podemos, ainda, fazer uma aproximação do que faríamos com ele em sessões de terapia e verificar se, após a intervenção, ele voltaria a tomar gosto pelo adocicado. O que as pesquisas demonstram: a resposta é afirmativa nos dois casos.

Isso nos indica que tanto os remédios quanto a terapia podem ajudar na questão da abolia. No entanto, mais do que tudo — e esse é o segundo ponto importante —, esse tipo de experiência ajuda a desconstruir alguns preconceitos.

Porque,  sim, quem tem casa, comida e roupa lavada pode se sentir deprimido. A abolia, esse lado terrível de uma depressão, não requer um trauma de infância nem uma violência terrível. Ela pode surgir daqueles momentos de estresse pequenos, porém constantes.

Pode aparecer por causa daquele chefe agressivo que está sempre bufando perto da nossa orelha, por exemplo. Vem da dor nas costas que não vai embora, não importa a posição que eu me sente na cadeira. O barulho de obra do vizinho que me impede de concentrar no trabalho.

O fato de as coisas perderam a sua graça não depende de um trauma no passado. Nem mesmo de um sofrimento pontual e enorme, como perder uma pessoa querida. Ao contrário, a abolia pode vir desse dia a dia silenciosamente cruel. 

A depressão pode vir da sensação de que estamos presos em um mundo desconfortável e do qual nunca vamos conseguir escapar.

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Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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