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Transtornos psiquiátricos podem alterar forma como vê e reage às situações

Dan Josua

07/03/2019 07h00

Crédito: iStock

A vida de Carol está longe de ser perfeita. Ela sofre dos estresses do dia a dia tanto quanto qualquer um. Mas, no que diz respeito à vida pessoal, ela é saudável: tem bons amigos e, em geral, se dá bem com as pessoas. Por isso, não ficou muito tensa quando foi convidada a participar de uma pesquisa que investigaria as relações sociais a partir de um pequeno jogo. Sua tarefa seria bem simples: passar uma bola virtual para outros participantes que, lhe disseram, estariam isolados, cada um em uma sala diferente com o seu computador.

Bastou meia hora e Carol já estava sentindo a maior monotonia. Ela quase não recebia a bola. Pensou:  "Eles devem se conhecer ou eu dei o maior azar e acabei sendo podada nesse jogo besta". É verdade que ela ficou frustrada, mas lá no fundo sabia que aquilo era só um jogo bobo e que ela não tinha feito nada de errado. Mais tarde, contou sua experiência para os amigos com um sorriso no rosto. A sensação de ter sido ignorada no joguinho tinha ficado, há muito, para trás.

O que Carol não fazia ideia: ela era a única pessoa jogando naquele momento. Os outros "participantes" eram apenas computadores programados para a excluir do jogo em pelo menos 75% dos passes. E, para a pesquisa em si, o seu relato e o de outras pessoas no seu grupo  –aquelas sem diagnóstico psiquiátrico, usadas como controle ou referência na investigação — foram importantes para compreender o que havia de diferente nas reações dos integrantes de dois outros grupos da experiência.

Um deles era formado por indivíduos com fobia social. O segundo, por pacientes diagnosticados com transtorno de personalidade borderline, que têm relações intensas e instáveis consigo e com quem está ao redor. Ou seja, Carol serviu para que a gente entendesse como a interação social para as pessoas com esses problemas era mesmo muito diversa daquela do resto da população.

Enquanto as respostas de Carol e a dos integrantes do seu grupo costumavam cair na linha do "eu dei azar ou eu não sei o que aconteceu", as pessoas no grupo dos fóbicos sociais construíram uma explicação completamente diferente: "tem alguma coisa de errado comigo ou eu estou fazendo alguma coisa errada", foram os relatos mais comuns entre elas. Em suma, o sofrimento social do fóbico parece vir de um profundo senso de inadequação, isto é, um medo abismal de que esteja sendo inadequado ou insuficiente. Mas não se assuste se você acha que responderia como alguém do grupo dos fóbicos sociais. Um diagnóstico psiquiátrico é bastante complexo e não pode, de maneira nenhuma, ser feito dessa maneira. Mais ainda, é importante lembrar que essas são as tendências desses grupos – com indivíduos que fogem da norma em todas as situações.

Já a turma do borderline deu um passo além. Depois de se declarar, como os fóbicos, incapaz no joguinho, sem as qualidades necessárias para receber a bola, frequentemente afirmava que todos queriam seu prejuízo:  "eu fiz tudo certo, mas  havia um complô para me deixar de fora, para me ferrar", foram as impressões mais comuns nesse grupo.

Gosto bastante desse experimento. Porque ele deixa claro como as pessoas com boas relações reagem diferente diante das situações e de outros seres humanos quando comparadas com casos associados a déficits nas habilidades sociais. Para elas, passar  uma bolinha virtual para outro jogador é apenas isso: um joguinho. E ser excluído dele não é uma tragédia nem um complô —  é apenas um acaso, ainda que chato.

Para o fóbico, no entanto, ficar fora do jogo é mais uma prova de sua inadequação. E para o borderline, uma evidência tanto de sua incapacidade quanto da violência do mundo. Esses transtornos estão ligados a uma história de vida que, de alguma forma, ensinou essas regras –por meio de relações fracassadas com amigos ou familiares, que deixaram sua marca na visão que essa gente tem de mundo. Quem foi marcado dessa forma acaba em um universo cujo colorido foi desbotado por essa lente. Aos poucos, passa a ver todas as situações distantes do que elas provavelmente são. Vive no mundo de hoje, mas preso nas vivências de ontem.

A liberdade da saúde mental será conquistada se conseguir voltar para o mundo como ele é. Deixar, um pouco que seja, o passado  das relações que não deram certo para trás e, assim, poder viver o agora.

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Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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