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"Chega de corpo mole!" O que a psicologia diz sobre o incentivo-pancada?

Dan Josua

20/02/2020 04h00

Crédito: iStock

É muito estranho o padrão usual de motivação. Lembro de aulas de natação em que a treinadora ficava na beirada da piscina gritando: "Vai p***, não quero ver corpo mole! Daaaaannnn! Pelo amor de Deus, você quer um chazinho ou vai se esforçar?!". O grito chegava desafinado e quase rouco nos meus ouvidos. Eu mergulhava a cabeça, soltava bolhas embaixo da água e seguia com minhas braçadas. Mas duvido que o meu ritmo melhorava muito na média e aos poucos fui perdendo a vontade de nadar. Assim que pude, abandonei o treino.

Só que essa história não é só minha –é a de quase todo mundo. É a de quem treinou algum esporte, mesmo de forma amadora, como eu. É também a de quem já entrou em vários dos programas de emagrecimento que existem por aí. É a do aluno que recebeu a prova marcada de anotações vermelhas e sem nenhuma palavra de apoio –ou, pior ainda, a daquele que ouviu a professora dizendo "Joãozinho, quatro e meio" na frente da sala inteira, uma ou repetidas vezes.

Quase todo mundo já foi vítima desse tipo de incentivo pela vergonha. Dessa tentativa de aumentar a motivação fazendo a pessoa se sentir mal com ela mesma. Sem esse impulso da humilhação, parecem acreditar os proponentes, as pessoas não mudam.

Acho que muitos dos profissionais que usam dessas técnicas agem assim porque não sabem fazer de outro jeito. Ou porque já fazem desse jeito há tanto tempo que agora não têm mais ideias de como tentar de outro modo. Seja como for, é fundamental pensar em duas perguntas:

  1. Isso é saudável para as pessoas?
  2. Funciona bem fazer desse jeito, isto é, as pessoas se tornam melhores alunos, emagrecem mais ou aprimoram sua performance de esportistas?

A resposta para ambas as perguntas é bastante clara: NÃO e NÃO.

Começando pela saúde mental, o que essas estratégias a médio ou a longo prazo fazem com a nossa cabeça? Em geral, o processo acontece em um crescente, que inicia com pensamentos como "eu não sei fazer ISSO", relacionados a uma tarefa específica, e termina em certezas como "EU não sei fazer as coisas", generalizando a incapacidade. Ou seja, inicialmente, apesar de trazer sofrimento, o pensamento e o sentimento ainda não são tão nocivos. Afinal, o foco é a atividade que não se sabe executar. Nesse estágio, a pessoa ainda pode procurar por soluções –realizar a tarefa melhor ou simplesmente abandoná-la, como eu fiz com a natação.

No entanto, com muita frequência o processo continua e a insistência nele muda o centro do problema. Aos poucos, a questão passa ser: EU não sei fazer as coisas. Em outras palavras, as dificuldades não dizem mais respeito ao que não pode ser feito, mas à pessoa que não consegue fazer. Nesse caminho, vão aparecendo pensamentos como "eu sou defeituoso" ou "eu não sirvo para nada".

O sentimento de vergonha começa a tomar conta e a raiva se dirige para dentro. Essa mistura, vergonha e raiva, parece ser um motor fundamental para uma série de psicopatologias como a depressão, a fobia social e o transtorno de personalidade borderline. Em resumo, esse tipo de incentivo pode aumentar o sofrimento no mundo.

Talvez você, ao ler isso, até pense: "eu ouvi coisa muito pior enquanto crescia e hoje estou bem, obrigado". Ou: "só algumas pessoas são mais sensíveis e ficam doentes". Talvez pense ainda que esse é o custo para termos grandes craques e grandes gênios: é preciso empurrar a moçada.

Eu confesso que discordo desse pensamento, se for o seu –quase a ponto de querer apagar esse tipo de argumentação do meu texto. Mas vou me manter firme e deixar ela por ali. Vamos tentar não nos apegar a uma discussão de princípios que não acabaria nunca e ir para o que importa? Vamos perguntar se isso funciona mesmo?

Aqui, como exemplo, vou falar da questão do emagrecimento, mas podemos ter conclusões semelhantes em outras áreas. Pois é, adivinhe qual é uma das questões mais comuns na obesidade? Quem chutou "vergonha" acertou. E não é para menos: se hoje já construímos uma cultura contra comentários homofóbicos e racistas, ainda não fizemos nada semelhante com a gordura. Basta ver o papel usualmente deixado para o gordo em uma comédia –o pateta, o sujeito atrapalhado e compulsivo. Nessa cultura, quem quer emagrecer e não consegue acaba imaginando que o problema está dentro dele. É o que acontece depois de anos ouvindo bobagens como "basta ter vergonha na cara e fechar a boca". Quem dera fosse tão simples…

Alguns estudos mostraram que intervenções capazes de focar nos pensamentos auto-dirigidos e na vergonha sentida por esses pacientes, dando-lhes ferramentas para lidar com essas questões, têm melhores resultados na perda de peso, especialmente a longo prazo. Isso mesmo. O que se vê na balança é mais interessante quando as abordagens usadas não se fixam na perda de peso propriamente dita. Em outras palavras, as melhores intervenções para a obesidade são aquelas que ensinam a combater as falas acusatórias que frequentemente dirigimos a nós mesmos.

Se o incentivo-pancada é absorvido suficientemente, ele acaba se convertendo em tabefes que vivemos nos dando. E, nesse caso, o que precisamos para emagrecer é justamente cuidar da maneira como colocamos essa motivação para dentro da nossa cabeça. Não somos um jumento que precisa de vara para seguir adiante –e, sinceramente, duvido que essa seja a melhor estratégia até mesmo com o jumento.

Outras pesquisas com corredores profissionais poderiam ser citadas. Uma investigação preliminar com esses atletas, feita por colegas meus em São Paulo, mostrou que o tempo deles melhora quando o pesquisador demonstra compreender a dificuldade da tarefa, em comparação à situação de quando ele diz ao corredor coisas como "é fácil, você deveria se esforçar mais".

Infelizmente, nosso tempo é curto. Mas esse texto é para mandar uma mensagem simples: não importa o quanto você ouviu críticas ou recebeu incentivo-pancada para mudar ou melhorar. Se você não está conseguindo é porque essa estratégia não funciona. Baixe suas armas e tente mudar ou melhorar porque há algo importante para a sua vida nisso –e não porque você acha ser um fracasso em uma coisa qualquer.

Para mais desses estudos, ver o livro de Steven Hayes – A Liberated mind – sem tradução para o português.

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Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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