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Como fazer para as brigas de casal no confinamento não destruírem a relação

Dan Josua

14/05/2020 04h00

Crédito: iStock

"Ela vive como se nada fosse importante" versus "ele é neurótico com detalhes e não consegue aproveitar o presente" —são exemplos de falas comuns em terapia de casal. A loucura é que o comportamento criticado não raro foi alvo de admiração no enamoramento inicial, quando o espírito livre era encantador e a preocupação com detalhes passava segurança. Mas viraram motivo de irritação e as pequenas intolerâncias  acumuladas começam a semear a separação.

Casais não costumam descobrir do dia para a noite que irão se separar. O mais típico é que acumulem raivas e ressentimentos por anos antes de assinarem os papéis de divórcio. E isso em tempos normais. Em tempos de quarentena, as implicâncias ficam sob uma lente de aumento chamada "convivência excessiva".

Os intervalos para espairecer, fofocar com amigos e se divertir de maneira mais livre andam inteiramente substituídos pelas mesmas tarefas domésticas divididas com a mesma pessoa —o que pode pesar no instante de relevar um par de meias jogado no sofá. Em outras palavras, talvez você nunca tivesse se incomodado com vários pequenos (e grandes) hábitos do seu parceiro, mas agora eles parecem o som de unha se arrastando no quadro negro.

Será quase inevitável dar uma indireta ou reclamar.

Aos poucos, o casal começa um jogo com placar invisível e, nele, aparentemente ganha quem encontra mais defeitos do outro lado. Assim, perdem os dois. Este é o momento de respirar fundo e pensar: "ele ou ela não está fazendo isso para me irritar".

É possível reconstruir uma boa relação de casal durante o desafio do confinamento, apesar de um não saber onde está guardada a espátula da cozinha e o outro ainda não ter ajudado na lição de casa das crianças? Sim, mas para isso é necessário um trabalho em duas frentes.

Em primeiro lugar, dentro do orçamento do casal, tentar reconstruir tempos positivos. Cozinhar juntos algo diferente ou pedir uma comida especial em casa de vez em quando, claro, são boas ideias. A melhor sugestão, no entanto, é aquela que você encontra olhando para a história do seu relacionamento. O que vocês costumavam fazer juntos quando estavam em paz um com o outro? É possível retomar? O que vocês têm a perder?

Na outra frente, é fundamental entender o que está acontecendo de errado. Para isso, é necessário desenvolver uma cultura de fala que deixa aquele placar invisível para trás e lembra de colocar a própria responsabilidade em primeiro lugar. Uma linguagem do EU para substituir as acusações do VOCÊ.

Nesse contexto, vale a pena entender qual seria motor propulsor de tantos desentendimentos. Os psicólogos americanos Jacobson e Christensen, dois dos maiores especialistas em terapia de casal do mundo, desenvolveram um acrônimo para nos lembrar dos quatro pontos a serem investigados. Eles usaram a palavra inglesa "deep" (profundo) para nos lembrar de ir mais a fundo em nossas reflexões sobre os motivos das desavenças.

D – Diferenças

Cada casal é composto de duas pessoas completamente únicas —e, portanto, completamente diferentes uma da outra. Vocês vieram de famílias diversas com valores diversos. Ao longo dos anos, porém, essas diferenças começam a cobrar a conta. Uma família passou por mais dificuldades e trouxe uma preocupação exagerada com dinheiro, por exemplo. Enquanto a outra, mais abastada, fez com que se crescesse sem a crença de que poderia faltar grana algum dia  —e, claro, super pode. Mais ainda, a dupla tem temperamentos diferentes, um é mais introspectivo e precisa de tempo a sós para recarregar suas energias, enquanto o mais extrovertido costuma ter uma necessidade maior de ver pessoas e se comunicar. É fácil notar como, se não forem respeitadas, essas diferenças irão aos poucos cavando um abismo entre o casal. Reconhecê-las, portanto, é o primeiro passo.

E – Emoções

Depois de reparar no papel das diferenças, é fundamental reconhecer como as emoções modulam o nosso comportamento e como isso gera reações do outro lado que tendem a alimentar o ciclo negativo. Pense naquela briga que aconteceu porque um de vocês estava irritado de fome. Ela começou com uma pergunta simples: "o que você quer almoçar?". E terminou com um conflito armado: "você é incapaz de tomar qualquer decisão, por mais bobinha que seja". A fome e uma série de emoções pintam nossa percepção do mundo com suas próprias cores. A ansiedade deixa o mundo desproporcionalmente perigoso. A tristeza provoca um excesso de arrependimentos e assim por diante.

E – Estressores externos

Às vezes, embora seja difícil admitir, descontamos o estresse do dia naqueles que estão mais próximos. Uma jornada difícil no trabalho, um cachorro com diarreia, uma vida confinada em casa, todos esses eventos externos nos mudam um pouquinho. Ficamos mais irritadiços, menos pacientes. E, sem perceber, mais implicantes e intolerantes. Em um pulinho, é fácil que um problema com o chefe sirva de catalisador para uma briga de casal.

P – Padrões de comunicação. 

Cada pessoa tem um padrão de comunicação,  tanto na briga quanto depois dela. Durante a briga em si, muitos caem no jogo da acusação ou culpabilização. Apontam o dedo, usam sarcasmo – "ah, então você é a pessoa perfeita e eu sou uma m…" — ou até mesmo berram. Outros tendem a se distanciar e a se calar. Estes podem recorrer a um jogo do silêncio ou ficar mudando de assunto, se recusando a enfrentar a situação. Existem, ainda, aqueles que lidam com a briga com seu Sherlock Holmes interior. Iniciam o interrogatório e passam a ser verdadeiros detetives, esperando pelo próximo deslize do parceiro. Por fim, há aqueles indivíduos iluminados que conseguem manter a tranquilidade e discutir o problema calmamente. Mais importante, são capazes tanto de pedir a opinião do outro lado quanto de ouvir para absorvê-la.

Note que, apesar desse último padrão favorecer a comunicação, ele também pode deixar a vida daqueles que tendem a fugir do assunto bastante difícil —se esse for o perfil do outro lado do casal —, aumentando as chances de conflito. No final, a melhor comunicação é aquela que encaixa.

A dica de Jocobson e Christensen é simples, mas poderosa. Escolha o assunto central —o tema a partir do qual muitos dos entendimentos parecem surgir —e tente entendê-lo a partir dessa perspectiva. Olhe para esses velhos problemas de uma maneira nova e, se possível, bem mais empática, criando um solo fértil para o diálogo. Em uma conversa sem dedos acusatórios e sem placares invisíveis, muitas vezes descobrimos que o amor ainda está lá, esperando para ser reascendido.

Importante: Este texto NÃO se direciona para quem está sofrendo de abusos físicos ou psicológicos de um parceiro ou parceira. Esses casos demandam outro tipo de intervenção –muitas vezes, até mesmo, policial 

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Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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