Após as eleições, onde vai morar a doçura?
Algumas pessoas têm tanto medo de uma tragédia que ficam ensaiando, em suas mentes, o pior acontecendo. Sentem-se angustiadas com a possibilidade, ainda que remota, de que esse evento terrível se concretize. Desesperam-se com a ideia de que o filho vá se engasgar, de que a esposa ou o marido vá sair de casa. Deixam de viver o seu dia a dia e passam a viver apenas para fugir dessa fantasia.
Em casos assim, uma estratégia eficaz de tratamento, paradoxalmente, é levar o indivíduo a aceitar que o pior pode, de fato, acontecer. Mas o psicólogo o convida a continuar com a narrativa, ou seja, a seguir com a história para além do evento fatídico. Parece terrível, mas aos poucos a pessoa vai percebendo que, mesmo após a morte do seu filho mais novo, por exemplo, ela acabará acordando para preparar o café da manhã para o filho mais velho. Entender que a vida continua traz liberdade (e esperança).
Neste momento, estamos olhando para o segundo turno das eleições, como se a vitória de um (ou de outro) candidato representasse o fim. Esquecemos, coletivamente, de imaginar a nossa mesa de café da manhã no dia seguinte. E, mais ainda, esquecemos de nos preparar para, independentemente de quem ganhar, fazer a nossa parte para tornar esse país o melhor que ele poderia ser. Não importa quem ganhe, será preciso lutar pelos direitos das minorias. E, não importa quem ganhe, será preciso combater a corrupção.
Este texto não é para discutir as eleições, nem mudar algum voto, mas para imaginarmos o que podemos fazer depois do próximo dia 28 de outubro.
Porque, sejamos sinceros, esse período tem sido uma batalha do bem contra o mal –e cada lado tem a convicção de que o adversário representa o que há de mais podre no país. Os termos "intolerância" e "corrupção" são bradados ad nauseam por seguidores de ambos os candidatos.
É o filho homossexual que sai do grupo de Whatsapp da família perguntando, com poças engasgadas nos olhos: "é isso, pai? eu precisava ter apanhado mais"?. É o pequeno comerciante gritando que não aguenta mais ver a filha na fila do SUS enquanto políticos corruptos viajam em seus jatinhos. Por aí vai…
Estamos presos a um discurso segundo o qual quem vota em um candidato seria tão ruim quanto as piores atitudes desse mesmo candidato ou de seu partido político. Se eu declaro o meu apoio ao Haddad, então sou um petralha que não se importa (e, quiçá, até lucra) com a roubalheira em Brasília. Se voto no Bolsonaro é porque sou homofóbico, machista e violento. No meio das acusações cruzadas, perdemos nossa humanidade e desaparece uma verdade: viemos de uma crise e não há solução fácil no horizonte. O país está desesperado.
O discurso excessivamente polarizado nos faz esquecer que há pessoas, a maior parte delas aliás, bem-intencionadas e desesperadas nos dois lados. O seu tio Zé, que o levou correndo para hospital quando você quebrou o braço, não se tornou um fascista da noite para o dia. Nem aquela sua prima concorda, muito menos lucra, com a corrupção do partido que levará o seu voto.
Nesta semana, o sofá do meu consultório foi testemunha de diferentes narrativas dessa história. Petistas, bolsonaristas e indecisos –todos, no fundo, preocupados com o futuro de suas relações familiares e de amizade, com o que restará das pessoas após as eleições. E se perguntando se a família e os amigos que elas conheciam e amavam tinham se tornado pequenos monstros; cegos e doentes.
Todos me dizendo, de um jeito ou de outro, que a doçura acabou.
Em algum momento, desaprendemos a discordar. Passamos a ser guiados pela raiva. Deixamos que o ardido indignado no peito (e isso vale para os dois lados) nos unisse contra supostos inimigos e nos esquecemos de perguntar quem está na oposição. Além disso, a raiva abafa uma pergunta fundamental: o que vai acontecer com os 45% dos eleitores que "perderem"? O que vai acontecer com os seres humanos, complexos e profundos, escondidos atrás dos rótulos que essas eleições estão impondo?
O que vai acontecer CONOSCO, se estivermos do lado que perder?
Onde vai morar a doçura em um mundo controlado pelo rancor e pelo medo? E o que vamos efetivamente construir se fundarmos nossa democracia em ódio e pânico?
O filósofo Karl Popper afirmou que, para uma democracia existir, é preciso ser intolerante com a intolerância. Poucas vezes na nossa história essa ideia foi tão importante. É preciso ser duro com aqueles que pregam pela destruição: ninguém merece morrer ou apanhar por ser quem é, por amar quem ama ou pela cor de sua pele. Essa é a base do estado de direito –e nenhuma votação pode colocar isso em cheque.
Só que a dura realidade é que homofobia e machismo matam –e a corrupção também. Não estamos em uma encruzilhada fácil e não precisamos ser condescendentes com nenhum desses crimes.
Mas, terminada a batalha contra qualquer extremismo, após fixar firme os nossos pés contra a intolerância, será fundamental falar de amor. Será fundamental procurar o tio, o primo, o irmão ou o amigo que apoiaram aquilo que achamos indefensável e dizer que os amamos. Ou, melhor ainda, que é possível haver amor na polarização.
Para fugirmos de um futuro sombrio, é preciso reconciliação.
Aliás, espero que os candidatos, nesse segundo turno, caminhem em direção a isso. Ainda é possível levantar a bandeira da fraternidade e da tolerância, mesmo com tanta barbárie sendo dita e feita. Lutar, sim, mas para acalmar os ânimos dos seus eleitores — embora, infelizmente, pareça difícil que esse seja o caminho daqui para frente.
E, se eles não fizerem isso, eu me pergunto: o que faremos nós?
É preciso defender a doçura, mesmo que Brasília vocifere ódio. Mesmo que estejamos sofrendo.
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