Da vontade de morrer a uma vida valiosa: o que aprender com Marsha Linehan
O vídeo na matéria em sua homenagem, publicado no New York Times, Marsha não esconde as marcas de queimaduras de cigarro. Nem as outras tantas cicatrizes de feridas que ela mesma se infligiu. Linhas que contam uma história de dor extrema. Um inferno emocional tão ardente que, de alguma forma, se cortar chegou a parecer um alento. Há algo de profundamente esperançoso em saber que braços assim podem pertencer a alguém que é homenageada por um dos mais prestigiados jornais do mundo.
Estamos falando da psicóloga americana Marsha Linehan, a primeira pessoa a demonstrar que era possível melhorar significativamente a vida de quem tivesse transtorno de personalidade borderline (TPB). Até o tratamento de Linehan ser desenvolvido, as pessoas com esse diagnóstico eram consideradas por uma parcela importante dos profissionais de saúde mental como intratáveis. Apenas para se ter uma ideia do que é o transtorno de personalidade borderline, tal patologia é caracterizada, entre outras coisas, por comportamentos se provocar lesões e intensa inclinação suicida. Em outras palavras, por gente que está sofrendo demais.
A terapia desenvolvida por Linehan, a comportamental dialética (ou DBT, do inglês dialectical behavior therapy), é impressionante, em parte porque foi idealizada por alguém que viveu o mesmo inferno que esses pacientes. A criadora da DBT passou parte considerável da sua juventude trancafiada em instituições de saúde mental que chegaram a considerá-la a paciente mais grave internada ali. É poético que a resposta ao seu próprio sofrimento tenha sido o desenvolvimento de estratégias para cuidar de outras pessoas com a mesma dor.
A terapia comportamental dialética é marcada por alguns insights importantes. Em primeiro lugar, a percepção de que pacientes com vidas marcadas pelo caos de internações e tentativas de suicídio frequentemente não puderam aprender algumas habilidades fundamentais para lidar com suas emoções (chamadas de estratégias de regulação emocional) e para construir relações sociais saudáveis (nomeadas estratégias de efetividade interpessoal). A percepção de Marsha era de que em meio ao caos de desregulação emocional de vidas conturbadas, às vezes falta tempo para parar e aprender estratégias efetivas de autocontrole.
Outro insight de Linehan foi a constatação de que seria impossível para um terapeuta, tendo que lidar com as crises de seus pacientes, conseguir também dar conta de transmitir todas essas habilidades para os mesmos. Assim, uma modalidade terapêutica específica, em grupo, foi criada —justamente para garantir que esse repertório pudesse ser ensinado às pessoas em tratamento.
Para a DBT, os comportamentos desses pacientes, que podem parecer conturbados, são estratégias pouco efetivas para lidar com problemas muito reais. E, sendo assim, a única coisa humana a ser feita é ensinar maneiras mais hábeis de endereçar esses mesmos problemas.
Marsha Linehan também percebeu que convidar os pacientes a mudarem seus comportamentos simplesmente, por mais razoável que fosse a sugestão, não era efetivo. Essas pessoas tiveram suas vidas marcadas pela sensação de que suas emoções não eram entendidas. Ao convidar insistentemente para a mudança, o terapeuta acabava repetindo de maneira inadvertida esse ambiente de invalidação e, dessa forma, alienando seus pacientes.
Era necessário, pois, aprender a aceitar o paciente como ele era. Em outras palavras, aprender a encontrar o que de válido havia no comportamento daquela pessoa. No entanto, da mesma maneira de um foco destemperado em mudança, uma ênfase exagerada em aceitação também se mostraria um problema. Afinal, se a realidade desses indivíduos era uma vida dolorosa, apenas a aceitação dessa dor terminaria por criar desesperança.
A sacada, então, de Marsha foi a de construir uma terapia que, ao mesmo tempo, sustentasse esses dois opostos. Mudar o que precisaria ser mudado E aceitar o que precisaria ser aceito. O termo dialética no nome de sua terapia tem a ver com a convivência, na terapia e na vida das pessoas, desses dois polos.
A mensagem da DBT, que é fundamental nesse setembro amarelo —mês internacional do combate ao suicídio — é a de que existe compreensão para a dor extrema. E, junto com esse entendimento, um espaço para a esperança de que uma nova vida, mais valiosa, é possível. Os braços marcados por cicatrizes de Marsha Linehan são lembretes poderosos dessa verdade singela: onde há vida, há espaço para mudanças e transformações.
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