Dissonância cognitiva: existe mesmo vitimização?
Eu estava na academia, conversando com um amigo e professor. Ele disse alguma coisa que eu sinceramente não me lembro. Eu disse que, em 2018, falar aquilo poderia soar homofóbico. Ele me disse que não era homofóbico e eu sei disso, mas a fala dele tinha soado desse jeito e vale a pena tomar cuidado. Não era uma bronca ou um discurso moralista – o papo foi com o tom leve de uma conversa entre pessoas que se gostam.
Essa leveza talvez tenha confundido a senhora ao nosso lado, que fingia levantar pesos enquanto alongava o pescoço para ouvir tudo a sua volta. Ela vociferou, sem ser convidada: "hoje em dia não se pode mais falar nada de ninguém. Se você não for homossexual ou negro" ela cuspia "você não pode falar nada de ninguém" – "ah, ou índio" ela completou orgulhosa. Eu engoli bile, mas não respondi: era o local de trabalho do meu amigo e eu não queria prejudicá-lo.
Mas a fala e a raiva dessa mulher não saiam da minha cabeça. Ela acha que é a vítima. Com sua roupa da track'n'field, essa senhora, branca e rica, se sente uma vítima da sociedade. Ela foi acusada de seus privilégios, talvez pela primeira vez, e agora sente que é alvo de algum complô politicamente correto. Que absurdo, eu matutava enquanto a julgava em silêncio.
Feliz com a minha análise, orgulhoso da minha superioridade, segui com a minha ginástica. (confesso que falar publicamente minha arrogância e tendência a julgar é bastante vergonhoso…)
A semana correu e eu fui obrigado a me dar conta: com frequência eu me coloco (indevidamente) no lugar uma vítima. Eu faço a mesma coisa que me foi tão fácil criticar. Talvez não de uma maneira tão escancarada, e não nesse tema, mas corriqueiramente eu me vejo perdido em pensamentos muito semelhantes.
A loja está fechando logo antes de eu entrar: eu sou muito azarado. Sou uma vítima do horário? Fui multado por falar no celular enquanto dirijo: eu faço tudo certo, na vez que eu preciso atender o telefone eu sou punido desse jeito, não é justo. Uma vítima das regras de trânsito??
Com frequência, a primeira coisa que me vem a mente não é que eu fui desorganizado e cheguei atrasado na loja. Também não me ocorre a noção óbvia de que eu nunca tenho o direito de falar no celular enquanto dirijo – estou, literalmente, colocando a vida de outras pessoas em risco. Sim, sim: o meu modo automático é idêntico ao da moça na academia. Antes que eu perceba, meu cérebro já criou explicações para provar que eu estou certo, que o meu desconforto é culpa do mundo e não das minhas ações.
Temos a impressão de nos conhecemos melhor do que qualquer pessoa. Afinal, temos acesso aos nossos pensamentos mais secretos, enquanto os outros veem apenas o que deixamos transparecer. Ainda assim, nossa percepção de nós mesmos é extremamente falha. Não estamos, via de regra, recebendo e analisando friamente os estímulos do mundo. Pelo contrário, estamos escolhendo sinais que garantem as narrativas que sustentam a nossa identidade.
Eu sou uma pessoa de bem que respeita as regras da sociedade – se eu sou multado, portanto, eu tive o azar de ser pego. Eu trabalho muito para poder comprar presentes para minha família no Natal – se eu chego atrasado, o funcionário da loja é insensível de não a manter aberta por mais cinco minutos. Etc, etc.
Aceitar essas quebras entre o que fazemos e nossa visão de nós mesmos dói mais do que eletrochoque e tem até nome: dissonância cognitiva. A verdade dos seres humanos é que é muito mais fácil ser vitima do que admitir que a maneira como nos portamos não é congruente com as ideias elevadas que temos de nós mesmos.
Se deixados no modo automático, somos máquinas de nos justificarmos.
Sendo assim, gostaria de ter dito para a mulher da academia: "a senhora não é a vitima nessa história, provavelmente, você está mais perto do lugar do algoz. Eu também. E isso é inaceitável. Temos, assim, duas opções: ou mudamos nosso comportamento ou nos escondemos nesse arbusto falso da vitimização. Porque você tem razão, é quase impossível viver se culpando".
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