Sobre pessoas que acham que sofrem por amar demais (e que estão enganadas)
Os cabelos dela continuavam despenteados. Mas o batom, a maquiagem e a roupa de "sair na rua" eram um bom presságio de melhora. Ela parecia estar voltando ao que sempre fora, ao autocuidado que sempre dedicou a si mesma. Sorri internamente observando esses sinais –mesmo enquanto ela se afundava exasperada no sofá
"Eu preciso ser curada de amor", ela disse.
O argumento, velho, é de que a sua derrocada em sofrimento só aconteceu porque tinha se apaixonado de verdade. A paixão era a culpada. A paixão e ela –afinal, foi ela quem encontrou o "homem perfeito" e colocou tudo a perder*.
O discurso de algoz do próprio destino não convencia quem via o caso de fora. Para o resto do mundo estava óbvio: esse homem não tinha nada de perfeito. Ao contrário, era um tipo muito comum de babaca em pele de cordeiro.
"Amor não é doença para precisar de cura, assim", eu respondi. O comentário espertinho tentava evitar que a sessão se tornasse um poço de lamentações. Não queria a gente se perdesse em mais um debate a respeito do cara –eu argumentando que ele não era bom para ela, ela dizendo o quão especial ele era. Ao mesmo tempo, meu comentário era um pouco da minha frustração ganhando voz. Talvez a semana estivesse difícil, mas eu estava particularmente cansado de ver boas pessoas se punindo por serem justamente as vítimas.
Porque todos os anos encontro alguns indivíduos nesse estado. Homens e mulheres que confundiram (alguma face de um) relacionamento abusivo com amor. Pessoas que passaram a enxergar o algoz através de óculos amorosos e, sem saber como explicar a dor que esse sujeito idealizado estava provocando, passaram a se envenenar com mais e mais culpa.
Não há uma saída fácil desse lugar, mas o roteiro que leva algumas pessoas a ele parece típico.
A primeira fase?,. A primeira fase é a do exagero.
Elogios hiperbólicos e beijos longos costumam pontuar os atos do abusador emocional nos primeiros encontros. O cara, de vez em quando, até dá explicações um pouco enroladas sobre como ele está perdido na vida, mas não costuma se aprofundar no significado disso para o relacionamento. São apenas sinais muito discretos da tempestade por vir, mas que rapidamente são empurrados para debaixo do tapete. Logo, o padrão impulsivo e apaixonado retorna –e a confusão em quem está do outro lado vai aumentando a contento.
Aí, quando a vítima está começando a se convencer de sua própria paixão, vem o primeiro sumiço. Esse desaparecimento, ao invés de fazer cair o véu do abusador emocional, acaba aumentando a cortina de fumaça. A vítima passa a imaginar que o frio na barriga, que surgiu após o sumiço, é uma evidência de que ela está, de fato, apaixonada.
Isso talvez aconteça porque medo e paixão têm sintomas físicos semelhantes: ambos aumentam o batimento cardíaco e o suor e ambos deixam a nossa visão concentrada em um só objeto. Com tantos elementos em comum, é fácil confundir os dois. Se quiser saber mais sobre a dificuldade de fazer a distinção entre emoções, aconselho a leitura do livro How Emotions Are Made (Como as emoções são feitas, sem tradução no Brasil"), da psicóloga e neurocientista Lisa Feldman Barret.
Assim, quando o abusador emocional reaparece com sorrisos e desculpas, a dor na barriga é que desaparece e a confusão, então, se consolida por completo. Na cabeça daquela pessoa, o nervosismo deixa de ser um sintoma de que algo está errado e passa a ser uma prova de que a paixão é real. Paradoxalmente, a partir desse ponto, quanto mais ela sofre, mais tem certeza de quão especial é quem causa esse sofrimento.
É estranho, mas é uma narrativa comum: se o sentimento é forte, algumas pessoas acreditam, ele deve ser verdadeiro. Como quem tem medo de avião passa a crer que sua ansiedade é prenúncio de uma queda, a vítima desse relacionamento acredita que o seu sofrimento é a certeza de quão especial é a pessoa que a abandonou . Em ambos os casos, diga-se de passagem, o sentimento indica tão bem a realidade quanto um termômetro quebrado.
Seja como for, nessa estranha equivalência, o buraco vai aumentando. E é raro que algum argumento racional consiga quebrar essa tendência. Amigos, familiares e terapeutas apontam as diversas inconsistências, mas frequentemente isso não é o bastante. Tentam realimentar a autoestima da pessoa, mas, de tempos em tempos, o infeliz reaparece –acendendo a velha chama e deixando com que seja ainda mais difícil seguir em frente.
Confesso que não conheço uma boa solução para fugir desse dilema. Talvez porque o problema pode estar na raiz da questão: na própria definição de amor.
Amor não é doença para ser curada, afinal. Porque amor não tem nada a ver com isso. O nome disso é medo e ele é uma prisão.
Esse padrão doloroso provavelmente tem a ver com insegurança. Com a falta de um amor verdadeiro que possa dizer, simplesmente, "eu te amo do jeito que você é". Amor não dá insegurança de troco, muito pelo contrário. Um bom relacionamento é um lugar para sermos lembrados de que não é preciso ser sempre mais, que somos dignos de amor da maneira como somos.
O amor é uma relação de tranquilidade –é a rede de segurança quando estamos no trapézio, não é o frio na barriga enquanto nos balançamos.
Todo mundo que ainda está preso em uma falsa paixão que se evaporou merece ser lembrado disso. Esse pavor aí não pode ser amor.
*O exemplo resume o perfil de diferentes pessoas. Ele, no texto, se refere a um casal homem e mulher, onde o homem abusa emocionalmente. Os papéis podem ser invertidos, ou presentes em relações homoafetivas.
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