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Ser psicólogo não é fácil, afinal: quem está cuidando de quem cuida?

Dan Josua

07/11/2019 04h00

Crédito: iStock

A verdade é que ser psicólogo é mais difícil do que aparenta, mas pouca gente parece perceber isso. Por exemplo, toda vez que eu vou cortar o cabelo é a mesma coisa:

"O que você faz?" 

"Sou psicólogo."

"Que bacana!" 

"Super. Eu amo o que eu faço". 

E, de fato, amo. Só que raramente a gente fala do lado pesado de ser um psicólogo. Segundo uma revisão feita na Universidade de Antioch, em Seattle, nos Estados Unidos,  81% dos psicólogos tiveram algum transtorno psiquiátrico diagnosticado. Ainda que muitos desses casos sejam de transtornos mais leves, a prevalência é assustadora.

Por que será que psicólogos sofrem dessa maneira?

Em primeiro lugar, acredito, porque existe uma grande carga emocional na convivência diária com o sofrimento alheio. Em especial, quando a ferramenta que temos para lidar com esse sofrimento é tão sutil e subjetiva quanto a da Psicologia  —que, afinal, está munida simplesmente de palavras. É claro que também existe uma grata compensação quando vemos todas as pessoas que melhoram e reconstroem suas vidas. Ainda assim, é difícil testemunhar dores psíquicas, tão nuas, todos os dias.

Uma das coisas que mais pesam na vida de um psicoterapeuta é a responsabilidade extrema a que às vezes somos submetidos. Uma ligação de madrugada com a pessoa do outro lado da linha prestes a se matar, por exemplo, é muito menos raro do que as pessoas que vêem a profissão de fora imaginam. Podemos ter bons argumentos e excelentes estratégias para lidar com a situação. Às vezes, convocamos família ou até mesmo bombeiros para nos ajudar. Mas ouvir as palavras de desespero pelo telefone é sempre extremamente angustiante. Porque, no final das contas, o psicólogo carrega um peso enorme nas costas –ter a vida de alguém do outro lado da linha e apenas palavras para evitar uma tragédia.

Mesmo quando tudo termina bem, é difícil para o terapeuta fechar os olhos e dormir. As milhares de possibilidades do que ainda pode dar errado misturadas com outras milhões de coisas talvez saiam dos trilhos com aquele paciente permeiam a noite do profissional que fica se virando na cama. Sinceramente, quando isso acontece, fico com pena da minha esposa ao lado. 

A responsabilidade é tão grande que uma das maiores suicidólogas do mundo, a americana Marsha Linehan (já contei um pouco sobre ela), exige que todos os psicólogos de sua abordagem participem de uma espécie de grupo de suporte para terapeutas. Essa atividade com os pares, segundo ela, é mais importante do que qualquer aprendizado técnico para um terapeuta de suicidas.

Os grupos de consultoria, como são chamados, têm duas grandes funções. Em primeiro lugar, ajudar o terapeuta a manter sua competência técnica. Isto é, ajudá-lo a manter sua capacidade de agir corretamente mesmo diante de situações extremas, como a que descrevi. Em segundo lugar, já disse, cria-se uma rede de suporte —e confesso que estive nesse lugar algumas vezes. Nela, é permitido que terapeutas chorem, se desesperem e se recomponham. Veja, apenas assim ele voltará a estar apto para ajudar da melhor forma possível o seu paciente. Nesses grupos, os terapeutas praticam uns com os outros as mesmas técnicas que incentivam seus pacientes a usarem.

A triste realidade é que há um sofrimento silencioso de quem cuida do sofrimento dos outros. Falei de psicólogos, ou seja, da minha experiência particular, mas argumentos semelhantes poderiam ser dados a médicos, a enfermeiros e a mais tantos outros profissionais da saúde, bem como a cuidadores. Não é a toa que as taxas de sofrimento mental dessas populações costumam ser elevadas. A prevalência de transtornos mentais em enfermeiros em um certo hospital da Bahia, por exemplo, é de 35%. 

Talvez não exista nada que possa ser feito para prevenir completamente essa dor –ela é parte do trabalho de cuidar da vida de alguém. Mas podemos pensar em como cuidar de quem cuida. Uma profissão pode ser incrível e apaixonante e, ao mesmo tempo, muito difícil e cheia de dores. 

Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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