Entenda o que é luto ambíguo e por que precisaremos lidar com ele agora
André fechou a porta do quarto para isolar sua mãe e proteger o resto da família. As conversas através da porta fechada traziam uma sensação surreal. Mesmo sabendo que era a mãe do lado de lá, parecia que ela não estava ali. Faltava a presença concreta.
Uma semana depois ela precisou ir para o hospital. Os médicos atualizavam a família sobre o avanço do quadro por mensagens de texto. Ninguém podia visitar a ala reservada aos pacientes com covid-19, mas André tentava se acalmar pensando que em breve tudo voltaria ao normal.
Sua mãe faleceu e foi enterrada em um caixão fechado. O velório tradicional não pôde acontecer. André se viu perdido, entre irritado e triste. Um lado seu sabia que a mãe tinha morrido, mas a falta dos rituais de despedida deixaram um buraco em sua capacidade de entender completamente a situação.
André, como tantos outros que perderam entes queridos nessa pandemia, precisarão processar uma perda ainda mais difícil do que a morte já costuma ser. Esse luto considerado ambíguo, segundo Pauline Boss, grande estudiosa do tema, está mais associado à melancolia e à ansiedade persistentes. Para quem não sabe, a professora da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, é considerada uma pioneira da terapia familiar. Ela define que o luto pode se tornar ambíguo quando algo da realidade da perda não pode ser devidamente processado.
É quando concretamente existe a ausência do corpo de uma pessoa da nossa convivência, mas a sua realidade psicológica se mantém presente. Acontece, por exemplo, com mulheres cujos corpos de maridos desapareceram na guerra e que, na hora de manter os filhos na linha, ainda dizem coisas como "quando o seu pai estiver aqui". Aliás, foi a partir de entrevistas com viúvas de corpos perdidos na Guerra do Vietnã que o fenômeno do luto ambíguo começou a ser estudado.
Existe o luto ambíguo também no sentido inverso, quando a realidade física está presente, embora a psicológica ou subjetiva já tenha desaparecido. É o caso, de quem convive com um familiar com Alzheimer —o corpo está ali, bem na nossa frente, mas é como se estivesse esvaziado da pessoa.
Ao quebrar os ritos que temos para lidar com a morte, é muito provável que a covid-19 vá deixar milhões de enlutados nessa situação, precisando lidar com uma perda ambígua e, por isso mesmo, mais devastadora. Um fim sem despedida torna difícil de o fechar de um ciclo. Muitos dos Andrés que se espalham pelo planeta vão ter dificuldade de acreditar no que sabem ser verdade —a pessoa que eles amavam não voltará.
Nossa cultura não está preparada para lidar com isso, já que a única reação que aprendemos a ter em relação à mortalidade é tentar evitá-la ao máximo. Pauline Boss afirma que nas culturas em que a morte é aceita como consequência natural da vida —ainda que postergada, quando possível — as pessoas tendem a lidar até mesmo com esse luto ambíguo de forma muito mais saudável.
Entre o índios norte-americanos Anishinaabe, por exemplo, às vezes se faz uma cerimônia equivalente ao funeral de um familiar com Alzheimer avançado. Depois dele, os cuidados, as medicações e o carinho continuam fazendo parte da rotina familiar, mas com o ritual é criado um espaço para se admitir a dura realidade: a mãe ou o pai ou o cônjuge que essa pessoa um dia foi não existe mais.
Talvez essa seja uma atenção importante nos meses e nos anos que ainda virão, por causa das mortes que se acumulam, como sabemos pelas manchetes dos jornais. Precisamos colocar os rostos de volta nessas estatísticas. E, acima de tudo, preparar os enlutados para o que devem enfrentar.
A morte é consequência necessária da vida. Aceitar essa realidade já nos coloca um pouco mais em paz com o nosso fim e com o fim de quem amamos. Essa noção da finitude pode nos empurrar, inclusive, para a vida que gostaríamos de viver.
Há muitos os filósofos dizem que aprender a morrer é a função da filosofia; está mais do que na hora de pegarmos o recado dos mestres do passado. E dar ainda outro passo: não apenas é preciso aprender a morrer, mas também a deixar morrer. Transformar a pessoa querida em memória, como escreveu Freud em "Luto e Melancolia" é a função final do luto saudável.
Evidentemente, o momento atual deixa essa tarefa difícil. Sim, a impossibilidade de se despedir atrapalha justamente esse processo de transformar alguém em memória. Mas saber o caminho de sair desse estado é fundamental. E, no caso, viver o luto, seja ele ambíguo ou não, com toda a sua dor é o único caminho para fora dessa mesma dor.
Vamos precisar, claro, criar novos rituais, novas formas de dizer adeus se as tradicionais falharem ou não forem possíveis. E lembre-se: abrir-se para essa dor é reconhecer o óbvio, que ela só existe porque ainda há amor. Talvez, pensando assim, não seja necessário que o sofrimento vá embora por completo. Quando aceitamos a dor do luto permitimos que o falecido viva na forma de memória amorosa
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