Por que as mortes no Brasil hoje chocam menos do que as da Itália em março?
Quando a Itália começava a ser devastada pelo novo coronavírus, eu acompanhava as notícias me segurando para não roer as unhas. Mil mortes por dia eram uma tragédia inacreditável e inaceitável. Como era possível? — Não cansava de me perguntar. E cheguei a me questionar se esse não seria o final do mundo como o conhecíamos.
Agora, três meses depois, vejo o altíssimo número de óbitos no Brasil e, sinceramente, meu coração mal muda de ritmo. Se ainda há um tanto de preocupação racional, a verdade é que o impacto emocional diminuiu enormemente.
A dessensibilização pela qual eu passei parece ser a realidade da maior parte de meus pacientes e conhecidos. Por que será que isso está acontecendo? Por que deixamos de nos chocar da mesma forma?
Será algum complexo de vira-lata que nos faz nos preocuparmos apenas com as mortes na Europa? Ou seria a quarentena tão cansativa que já nem damos mais valor para a vida humana? Ou será, por fim, que o cinismo tomou conta e agora a única coisa que nos importa é a economia e alguma volta à normalidade?
Bom, em alguma medida, cada uma dessas perguntas pode apontar para um pedacinho do fenômeno, mas não acho que elas nos aproximem do cerne do problema. E ele parece vir da própria natureza humana: a gente não sente em termos absolutos, mas por contraste.
Sabe aquela pessoa maravilhosa no primeiro encontro que se torna comum dois anos depois? É mais ou menos isso.
Para ter uma noção, essa coisa é tão séria que alguns estudos sugerem o seguinte: ganhar na loteria e sofrer um acidente paralisante tem mais ou menos o mesmo impacto sobre a nossa felicidade após um ano. Ou seja, relativamente muito pouco tempo depois.
Isso mesmo. Se você ganhar na loteria, provavelmente depois de um ano acabará se sentindo tão feliz quanto se sentia antes da dinheirada toda. E o mesmo vale para um acidente grave. É óbvio que os primeiros meses após ganhar na loteria são preenchidos de êxtase enquanto os meses subsequentes a um acidente que provocou uma paralisia tendem a ser de luto e melancolia. Mas a tendência a longo prazo é que as emoções voltem ao normal.
O terceiro carro novo que você consegue comprar na vida não traz a mesma empolgação do primeiro.É apenas mais um carro. E, no caso das perdas de quem ficou com as pernas paralisadas, elas aos poucos são substituídas por pequenos ganhos do dia a dia.
É claro que todo mundo escolheria vencer na loteria, se lhe fosse dada a opção. E é mais óbvio ainda que todos devemos dar suporte para quem passou por um acidente. De qualquer maneira, a noção básica não deixa de ser alarmante: seres humanos tendem a se acostumar com tudo o que se apresenta estável.
Talvez seja isso o que acontece agora. A covid-19 mata há tempo o bastante para que a gente ache normal que as coisas sejam assim. Do mesmo modo, a polícia no Brasil é tão violenta que não nos surpreendemos mais com essas notícias — elas são frequentes, porque a polícia brasileira é a que mais mata no mundo. Também cruzamos com moradores de rua em nosso caminho todos os dias e já não nos comovemos. O hábito da tragédia nos insensibiliza.
Esquecemos, assim, que mil mortes por dia não são apenas um número — são mil tragédias familiares. E como observar esses casos está se tornando um hábito, o impulso de fazer a nossa parte vai se perdendo. Por exemplo, deixamos de obedecer às regras de distanciamento social e, se usamos a máscara, ela frequentemente está abaixo do nariz (porque, aí, não embaça os óculos).
No momento em que normalizamos a morte, começamos a desencanar de nosso papel no meio disso tudo. E essa tendência pode acabar em catástrofe. E, mais triste, pode ser que a gente nem perceba o drama.
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